Debora Diniz * É comum associar o conceito de vulnerabilidade aos estudos sobre comportamentos e práticas sexuais no campo do HIV/AIDS. O desafio de educar as pessoas para o risco exigiu uma ampla reflexão sobre como diferentes grupos de pessoas expunham-se diferentemente à doença. A máxima “informação não muda comportamentos” rapidamente tornou-se a expressão que resumia o tamanho do desafio das campanhas de prevenção para o HIV/AIDS. Não bastava informar as pessoas sobre o risco da infecção pelas relações sexuais inseguras. Mesmo de posse das informações médicas corretas, muitas pessoas não eram capazes de modificar seus valores morais e, portanto, seus comportamentos. O desafio imposto pela tentativa de promover o sexo seguro entre mulheres em uniões estáveis, por exemplo, mostrou que havia algo anterior à ausência de informação que fazia com que alguns grupos de pessoas estivessem mais expostos ao vírus que outros. Nesse contexto, o conceito de vulnerabilidade mostrou-se esclarecedor. As mulheres em união estável, em especial aquelas de classes populares, não eram capazes de negociar o sexo seguro com seus parceiros fixos, tornando-se, portanto, um alvo potencial para a AIDS. Mas o que tornava essas mulheres incapazes de negociar sua própria sexualidade? A aposta de que informá-las sobre o risco seria capaz de fortalecê-las mostrou-se rapidamente inocente. As poucas mulheres que ousaram subverter os padrões hegemônicos das relações de gênero pela imposição de estratégias de proteção, como o duplo método ou mesmo pela substituição do anticoncepcional pelo método de barreira, foram moralmente punidas, ou com acusações de infidelidade conjugal ou mesmo com atos de violência. A incapacidade para negociar o duplo método, ou, mais simples ainda, para controlar sua própria sexualidade, era algo anterior à AIDS e de uma ordem mais profunda de nossos códigos morais. As mulheres eram vulneráveis ao HIV/AIDS não por uma particularidade do vírus em relação ao corpo feminino, mas especialmente por uma vulnerabilidade moral das mulheres no jogo afetivo, sexual e reprodutivo que impera em grande parte das sociedades. As mulheres são um exemplo paradigmático de um grupo vulnerável. A vulnerabilidade feminina não é exclusiva das situações de risco para o HIV/AIDS, mas uma condição da socialização feminina em que ser mulher é ocupar um espaço de desvantagem social, em especial no campo das relações afetivas e sexuais. Mas ser vulnerável para algo não é o mesmo que possuir uma predisposição natural para uma doença ou um comportamento As mulheres não nascem vulneráveis para a AIDS. É a socialização feminina, pautada em regras rígidas de submissão de gênero, que as vulnerabiliza. E se é a socialização o que vulnerabiliza as mulheres à AIDS não basta apenas intervir na doença por meio de medicamentos e tratamentos, é preciso modificar os padrões morais que impedem que essas mulheres protejam-se do risco. Os mais recentes indicadores de crescimento da doença são exatamente o resultado desse quadro extenso de vulnerabilidade: é entre mulheres jovens e pobres onde a epidemia mais cresce no Brasil. Estar atento à vulnerabilidade das pessoas exige mais do que uma prática médica tecnicamente precisa. A proteção das pessoas vulneráveis pressupõe conhecimentos não-técnicos, como sensibilidade para os papéis de gênero, para valores associados à raça e classe, e especialmente para crenças e valores morais que determinam a forma como as pessoas aceitam, negociam ou rejeitam as prescrições médicas. O exemplo da AIDS nos mostra isso. Muitas mulheres de classes populares não são capazes de aderir ao tratamento, pois o mesmo exige um reordenamento de suas tarefas domésticas e profissionais, algo que elas não são capazes de negociar. Cabe às mulheres não apenas o cuidado de si, mas o cuidado do companheiro, na maior parte das vezes em estágio avançado da doença, ou mesmo dos filhos também doentes ou em uma fase que naturalmente necessitam de cuidados maternos. Em nome desse papel de cuidadora, muitas mulheres de classes populares não acompanham o tratamento, fragilizando-se ainda mais frente o vírus. Neste sentido, qualquer profissional de saúde que compreenda a saúde como um exercício de dignidade da pessoa humana deve ser sensível às diversas formas de expressão dos padrões de desigualdade social. A doença, por si mesma, fragiliza o sujeito que sofre, mas o conceito de vulnerabilidade nos mostra algo além dessa condição natural do adoecer humano. Reconhecer a vulnerabilidade moral das mulheres ao HIV/AIDS, por exemplo, nos impõe o desafio de sair à procura de outras estratégias, além das oferecidas pela técnica, para promover a saúde e a dignidade das mulheres. * Doutora em Antropologia. Diretora da ANIS: Instituto de Bioética, Direitos Humanos e Gênero. Recém-eleita para a diretoria da Associação Internacional de Bioética (IAB). e-mail: d.diniz@anis.org.br Para saber mais sobre vulnerabilidade e bioética: § Diniz, Debora e Guilhem, Dirce. “Bioética Feminista: o resgate político do conceito de vulnerabilidade”. Bioética. 2000; 7: 181-187. § Diniz, Debora e Guilhem, Dirce. O que é Bioética? São Paulo. Brasiliense. 2002.
Vulnerabilidade e prática médica:a lição deixada pela AIDS
14/08/2003 | 00:00