Resultado são tratamentos ineficazes que até estimulam sofrimento O tratamento tradicional para as dores de cabeça crônicas, baseado em analgésicos e anti-inflamatórios, pode estar alimentando a dor ao invés de combatê-la. O motivo é o fato de a classe médica não considerar as enxaquecas e as dores de cabeça em geral como doenças propriamente ditas. Esta é a avaliação de Gilles Géraud, professor e especialista em neurologia (no Centro hospitalar universitário – CHU – de Toulouse). Leia a seguir entrevista do médico para Le Monde Le Monde – Desde quando foi constituído esse conceito diagnóstico chamado de ‘cefaléias crônicas cotidianas’, que abrange o conjunto das cefaléias tão logo que elas se instalam de maneira duradoura? Gilles Géraud – Os especialistas da neurologia vêm falando em cefaléias crônicas cotidianas já faz cerca de dez anos. Foi por volta de 1994, graças, principalmente à implantação de centros especializados nos tratamentos das pessoas sofrendo de cefaléias, que nós nos demos conta não só de que este fenômeno existia, mas também que a sua dimensão era considerável. Desde então, ano após ano, este fenômeno não parou de adquirir importância. Atualmente, nós dispomos de dados epidemiológicos confiáveis que nos permitem afirmar que ele atinge entre 3% e 5% da população dos países industrializados. Na França, cerca de 3% das pessoas com idade de mais de 15 anos sofrem de cefaléias crônicas cotidianas. Dentre elas, uma grande maioria é formada por pacientes sofrendo de enxaqueca que eram acometidas de crises episódicas e que, com o passar do tempo, transformaram a sua enxaqueca episódica em cefaléias crônicas cotidianas, ou seja, enxaqueca “transformada por abuso de analgésicos”. Le Monde – Será que se pode verdadeiramente afirmar que é o abuso de medicamentos que conduz à instalação destas cefaléias crônicas? Gilles Géraud – É preciso admitir que esta questão continua sendo objeto de discussão. Não se sabe ao certo qual é a galinha e qual é o ovo. Para os doentes, não existe qualquer dúvida de que a utilização que eles fazem dos medicamentos é a conseqüência e não a causa do seu sofrimento. É verdade, mas é também verdade que este consumo excessivo de medicamentos é um fator de manutenção das suas cefaléias. E, neste caso, não se pode ajudar essas pessoas caso não for possível interromper de modo duradouro o seu consumo de remédios. Le Monde – Em outras palavras, estamos diante de um paradoxo: o tratamento estaria incentivando o mal. Será mesmo? Gilles Géraud – Por mais estranho que isso possa parecer, é o que acontece de fato. Além, trata-se de um paradoxo que não vale apenas para as cefaléias crônicas cotidianas. Quando um médico lida com pessoas que sofrem de reumatismos crônicos, sem antecedentes de sintomas de enxaqueca, e que, elas também, consomem cotidianamente, e por longos períodos, medicamentos contra a dor, ele observa que elas nunca sofrem de cefaléias crônicas cotidianas. Le Monde – O que o senhor chama, precisamente, de “cefaléias de tensão”? Gilles Géraud – Esta denominação, que, para dizer a verdade, não é muito feliz, surgiu no final dos anos 80 na classificação internacional. Anteriormente, na França, nós falávamos em “cefaléias psicogênicas”, o que conferia uma dimensão um pouco psiquiátrica a este diagnóstico. Com esta nova denominação, fica acentuado, de maneira excessiva, na minha opinião, o aspecto muscular. Pessoalmente, eu não creio que a origem dessas cefaléias reside numa “tensão” excessiva provocadas por “contrações” dos músculos do rosto ou das vértebras. A verdade é que não se sabe ao certo qual é a origem precisa dessas cefaléias, que só dizem respeito a cerca de 10% a 20% das cefaléias crônicas cotidianas. Seria mais adequado falar, de maneira mais modesta, em cefaléias não associadas à enxaqueca. Le Monde – O grupo de especialistas que o senhor dirige, e que foram reunidos pela Agência Nacional de Credenciamento e de Avaliação em Saúde (Anaes), menciona os medicamentos antienxaqueca da família dos triptans entre os que podem conduzir à instalação das cefaléias crônicas cotidianas. Ora, estes medicamentos são apresentados como sendo a chave do tratamento da crise de enxaqueca. Gilles Géraud – Os medicamentos da nova classe dos triptans [nova geração de remédios antienxaqueca, mais poderosos] constituem um avanço real, mas não se deve abusar deles. Aliás, isso pode ser dito tanto dos medicamentos como de muitas outras coisas. Le Monde – Na sua opinião, a maneira com a qual pessoas sofrendo das cefaléias crônicas cotidianas são atendidas e tratadas lhe parece adequada e bem organizada, na França? Gilles Géraud – Não. Os médicos estimam que não se trata de uma verdadeira doença, no que eles estão profundamente equivocados. Eles têm na sua clientela pessoas que sofrem de dor de cabeça, que consomem analgésicos todo dia ou quase, e eles não se preocupam nem um pouco com isso. É verdade que são eles que prescrevem esses medicamentos. Apesar do custo humano e financeiro que tudo isso acarreta, eles não acham que isso lhes diz verdadeiramente respeito. Para um grande número dentre eles, as cefaléias crônicas cotidianas são uma forma de fatalidade. É da mais alta importância informar e conscientizar os profissionais da saúde de que os tratamentos que visam a “desmamar” os pacientes do consumo abusivo de medicamentos, e que levam em conta a existência dos fatores tais como a ansiedade e a depressão permitem, na grande maioria dos casos, curar um mal que constitui um grave problema para a pessoa. Para tanto, é preciso substituir a este consumo que se tornou patogênico a utilização de outras substâncias que irão prevenir o aparecimento das cefaléias. Isso vai exatamente contra todos os abusos que, via o efeito placebo, principalmente, existem no campo do atendimento e do tratamento das pessoas que sofrem de enxaquecas e de cefaléias crônicas. Enxaqueca não acaba com excesso de remédio Médicos advertem que a medicação pode se tornar um grave vício Este mal tem um nome; a seu respeito, fala-se em “cefaléias crônicas cotidianas”. Os especialistas da neurologia lamentam que este tipo de moléstia seja até hoje ainda muito pouco ou mal conhecido, não só do grande público como também de um grande número de profissionais da saúde. Trata-se de um desconhecimento bastante paradoxal, uma vez que, segundo informam os números oficiais apresentados pelos especialistas na questão, que estiveram recentemente reunidos pela Agência Nacional de Credenciamento e de Avaliação em Saúde (Anaes), cerca de 3% da população francesa de mais de 15 anos sofre deste mal, as cefaléias crônicas cotidianas podendo, paralelamente, atingir também as crianças e os jovens. Uma vez que as definições são, neste campo, relativamente precisas, torna-se tentador fazer o seu próprio diagnóstico e descobrir se isso nos diz ou não respeito. As cefaléias crônicas cotidianas se definem pela presença de cefaléias de tipos diferentes, mas que têm como ponto comum de ocorrerem há mais de três meses, ao menos 15 dias por mês e mais de 4 horas por dia, caso o paciente não receber nenhum tratamento. Além disso, é necessário –e é neste ponto que o médico deve intervir– que nenhuma lesão ou doença orgânica seja de natureza a explicar o caráter freqüente e duradouro de tais fenômenos doloridos. Na prática, os especialistas distinguem duas situações que são diferentes sob todos os aspectos. Há as dores de cabeça características da enxaqueca. Trata-se de cefaléias bastante específicas, que ocorrem quase sempre numa única metade do crânio, e que são do tipo pulsátil. A dor pode ser muito intensa. Em muitos casos, ela é acompanhada de náuseas e de vômitos, sendo agravada pelos esforços, a luz e o barulho. A duração da crise pode variar de 4 a 72 horas. Há também as dores de cabeça características da cefaléia, conhecida como “cefaléia de tensão”. Diferentemente da enxaqueca, a dor craniana é bilateral, sendo que ela não se exerce de um modo pulsativo, transmitindo porém uma sensação de “pressão”, de “capacete”, de “torno”. O sofrimento é de uma intensidade menos elevada, e não é acompanhado de distúrbios digestivos. A crise pode ser breve, ou se instalar por um período mais longo, podendo alcançar uma semana. Nas recomendações que eles acabam de formular, e que eles dirigiram ao conjunto dos profissionais da saúde, os especialistas reunidos a convite da Anaes lembram que o diagnóstico de cefaléias crônicas cotidianas é mais uma questão de interrogatório do que de exames biológicos. Mesmo assim, isso não impede que um exame clínico neurológico seja indispensável e, em certos casos, diversas investigações suplementares podem se revelar necessárias, com o objetivo de identificar certas patologias que poderiam explicar as cefaléias persistentes. Nestes casos, exames sangüíneos ou radiológicos (tais como aqueles por imagens e ressonância magnética, entre outros) são então praticados. Uma vez estabelecido e confirmado o diagnóstico de cefaléias crônicas cotidianas, a principal questão levantada é a que diz respeito ao consumo de remédios, –à sua natureza, sua freqüência e o seu volume– aos quais o paciente recorre para lutar contra os seus sintomas. Os especialistas falam em “abuso de medicamentos” tão logo este consumo se torna regular e quando a sua duração supera três meses. Mais precisamente, este abuso existe a partir do momento em que o consumo se estende além de 15 dias por mês, para os medicamentos antidor habituais (paracetamol, aspirina) e os antiinflamatórios não esteroidianos, ou de mais de 10 dias para os outros tratamentos das crises doloridas: medicamentos opiáceos, derivados do esporão de centeio (doença que atinge esta planta e produz um veneno de propriedades vasoconstritoras, eficiente contra a dor de cabeça), e medicamentos da família dos “triptans” (família farmacológica de remédios antienxaqueca, poderosos e de nova geração). Os especialistas que trabalham nos serviços de consultas especializados nos tratamentos das cefaléias estimam que entre 60% e 80% dos pacientes que sofrem de cefaléias crônicas cotidianas abusam dos medicamentos. No conjunto da população, esta proporção é da ordem de um terço. Ora, o paradoxo, aqui, faz com que este consumo abusivo de medicamentos, longe de agir de maneira eficiente nos pacientes, pode participar da manutenção, e até mesmo provocar o surgimento, dos fenômenos doloridos. “Apenas uma interrupção completa e continuada deste consumo permite afirmar o papel causal deste consumo de remédio na manutenção das cefaléias crônicas cotidianas”, afirmam os especialistas. Uma vez o abuso instalado, as tentativas do paciente para interromper o seu consumo podem provocar uma cefaléia “de rebote” que reforçará então a sua necessidade de dar continuidade ao seu consumo. “É também importante saber que nas pessoas que não sofrem de cefaléias, um uso abusivo de analgésicos para enfrentar dores crônicas não provoca cefaléias crônicas cotidianas”, precisam. Neste caso, fala-se em “desmama”, na medida que o comportamento da pessoa que abusa de medicamentos apresenta as duas características principais da dependência: a perda de controle sobre o consumo e o prosseguimento deste consumo, apesar de estar ciente de suas conseqüências nefastas. Com freqüência, ocorre também que, ao abuso de analgésicos sejam associados outros tipos de dependência, principalmente em relação á cafeína, ao álcool, aos opiáceos ou às benzodiazepinas. É importante também procurar por outros tipos de fatores, entre os quais os mais freqüentes são os distúrbios ansiosos e depressivos, que costumam ser intimamente vinculados à ocorrência de cefaléias. Os especialistas recomendam também procurar por determinados elementos que costumam favorecer a emergência das cefaléias crônicas cotidianas. Trata-se principalmente das modificações dos equilíbrios hormonais característicos da menopausa, sem contudo que se possa precisar se os tratamentos hormonais substitutivos exercem ou não uma influência. Tradução: Jean-Yves de Neufville Da Assessoria de Imprensa do Cremepe. Com Informações do jornal Le Monde, de Paris.
Médicos subestimam enxaqueca, diz especialista
19/11/2004 | 02:00