José Silveira, uma estrela no céu Santo-amarense de nascimento, soteropolitano de coração, baiano com orgulho e alemão por semelhança física. Assim foi José Silveira. Reconhecido por sua competência e dedicação à cura da tuberculose, admirado por seus pares, seja na Medicina, seja na Academia de Letras da Bahia, onde ocupou a cadeira número cinco, o médico-escritor é homenageado em seu primeiro centenário de nascimento. Falecido em 3 de abril de 2001, aos 96 anos, mestre Silveira deixou muito mais do que saudades. Após os estudos na Alemanha, na década de 30, voltou ao Brasil com uma idéia: criar uma instituição responsável pelos cuidados aos tuberculosos e ao estudo da doença. Em 1937, com a permissão da Faculdade de Medicina para que utilizasse os porões de seu ambulatório, José Silveira funda o Instituto Brasileiro para a Investigação da Tuberculose. Os trabalhos de pesquisa e publicações do Ibit conquistaram o reconhecimento nacional e internacional. Para que o trabalho do Ibit pudesse expandir, era necessária uma sede própria. Depois de muitas batalhas, Silveira conseguiu um terreno ao lado do cemitério Campo Santo. Com a ajuda do Governo do Estado e do empresário baiano Carlos Costa Pinto, a sede do instituto é inaugurada em 1944, no mesmo local em que funciona até hoje. Suas instalações são consideradas exemplares, sendo referência no Brasil para a investigação e tratamento da tuberculose. A partir do Ibit, foi criado o Hospital do Tórax, mais conhecido como Hospital Santo Amaro, com o objetivo de tratar pacientes com doenças relacionadas ao tórax. Mesmo com a força de vontade e trabalho árduo de seu fundador e dos funcionários, as instituições dependiam de auxílio financeiro. Num gesto de compreensão, representantes do empresariado baiano se aliaram às instituições criando a Fundação José Silveira, tendo como meta subsidiar as obras assistenciais do Ibit, que continuaria atendendo gratuitamente a comunidade. “Todo homem que nasce com a vocação de fazer o bem à comunidade, faz nascer uma estrela no céu”, afirmou Monsenhor Sadoc na missa celebrada em homenagem ao centenário de nascimento de José Silveira, seu conterrâneo e amigo de longa data. Para o médico Fernando d’Almeida, presidente do Conselho de Curadores da Fundação José Silveira, os maiores legados deixados pelo mestre foram o conjunto arquitetônico da Fundação e a obra social, em favor dos mais pobres. “Sua luta impregnou funcionários e amigos da Fundação, inspirando em todos a vontade de continuá-la”, declarou. Gerenciada por um conselho de curadores, a Fundação José Silveira conta com cerca de 1200 funcionários, integrando uma rede de assistência à saúde e atividades voltadas para a ação social. Também foram agregadas ao Ibit e ao Hospital Santo Amaro as seguintes instituições: Laboratório José Silveira, Unidade de Saúde e Meio Ambiente (Usma) e Instituto Bahiano de Reabilitação (IBR), assumido pela Fundação em 2003. LITERATURA – Para comemorar o centenário do mestre Silveira, a Fundação José Silveira organizou um conjunto de atividades que culminou com uma missa de ação de graças, no dia do aniversário de nascimento do patrono, em 3 de novembro. Celebrada pelo Monsenhor Gaspar Sadoc, a homenagem contou com a presença de amigos do casal José e Ivonne (esposa de Dr. Silveira, falecida em 2000), autoridades, representantes de entidades médicas e funcionários da Fundação José Silveira. Presidente da comissão que organizou a comemoração do centenário do mestre, a conselheira do Cremeb Maria Theresa Pacheco fez um breve histórico da vida do mestre, durante as comemorações. “A luta pela saúde num país como o Brasil é obra para predestinados”, afirmou. Amiga do casal, Maria Theresa foi considerada por Silveira uma filha que não pôde ter. Utilizando alguns títulos de livros do mestre para prestar uma homenagem durante seu discurso, a conselheira afirmou: “Grandioso cientista, não menor o homem de letras. Já o disse alhures – Do Carro de Boi ao Zepelim, passando pelo Caminho da Redenção, o Neto da D. Sinhá continua José Silveira sendo, Eternamente, Outro, a Imagem da Minha Devoção”. A literatura, aliás, era a outra paixão de José Silveira. Seu apreço pelos livros, fossem científicos ou não, era demonstrado desde a adolescência. Em suas memórias, o mestre conta os sacrifícios financeiros para adquirir os livros durante a faculdade e a importância deles para a sua formação médica. Com a criação do Ibit, passou a se preocupar com a troca de informações e publicações, estabelecendo uma biblioteca com exemplares clássicos e modernos, de vários países e línguas. A produção científica de José Silveira beira mais de 200 trabalhos, publicados em revistas médicas nacionais e internacionais. Livros sobre medicina foram 12. Suas memórias, que contabilizam 13 obras, foram as responsáveis pela sua entrada na Academia de Letras da Bahia, onde ocupou a cadeira de número cinco. Foi substituído pelo escritor e jornalista Guido Guerra. A paixão pela cultura e pela cidade natal, Santo Amaro, fez com que Silveira fundasse, em 1987, o Núcleo de Incentivo Cultural de Santo Amaro, o Nicsa. Estruturado no antigo sobrado da família, acolhe cerca de 43 crianças carentes que se dedicam a atividades artístico-culturais e manifestações típicas da região. Comporta ainda uma biblioteca com cerca de 30 mil exemplares, para incentivar a leitura entre o público infantil. Vida de sacrifícios Nascido de família humilde, na pequena Santo Amaro da Purificação, em 3 de novembro de 1904, José Silveira aprendeu cedo os difíceis caminhos da vida. Perdeu a mãe ainda criança. Foi criado pela avó, D. Sinhá, tão citada em seus livros de memória, enquanto o pai era transferido de cidade em cidade, por conta de um emprego público. Era o pequeno Zezinho, amparado pelas tias Iaiá e Zizinha e pelo tio-padre José Loureiro. Na adolescência, outro choque: seu pai morre durante uma viagem a caminho da Bahia, vindo do norte do país, onde estava trabalhando. Com muito sacrifício e estudo, José Silveira presta os exames preparatórios e ingressa na Faculdade de Medicina da Bahia, em 1922. Nunca soube explicar o porquê da escolha por tal carreira. “Não sei de onde me veio esta inclinação pela medicina. Sempre soube que queria ser médico. Eu quase senti a medicina em mim”, afirmava o mestre Silveira. Na faculdade, passou com louvor por todas as fases – calouro, calouro enfeitado, calouro de hospital, doutor do quarto – até concluir o curso em 1927. Às vésperas da formatura, sofre mais uma perda: sua querida avó, D. Sinhá, morre de tuberculose, doença que viria a combater anos depois. Já formado, às custas de mais sacrifícios financeiros, segue para a Alemanha, onde se especializa em Radiologia e Tisiologia, com incentivo de seu grande mestre, o médico Prado Valladares. Na Alemanha, por vezes o confundiam como verdadeiro alemão. O tipo físico, alto e loiro, e o falar correto enganaram a muitos. ORADOR – De volta ao Brasil, Silveira inicia a luta para erradicar a tuberculose na Bahia. Ao ser convidado a palestrar no Instituto Ludolf Brauer, no ano de 1936, na Alemanha, José Silveira inspira-se e tem a idéia de criar o Instituto Brasileiro para a Investigação da Tuberculose – o Ibit. Em 1937, começa a concretizar o projeto no subsolo do Ambulatório do Canela que pertencia à Faculdade de Medicina, iniciando a grande obra pela qual se tornaria conhecido em todo o País e no mundo. José Silveira também foi professor da Faculdade de Medicina, o primeiro a ocupar a cadeira de Tisiologia, criada em 1951, e atualmente extinta. O vice-presidente do Cremeb, Jorge Cerqueira, foi aluno do mestre e recorda como eram suas aulas. “Nas aulas práticas, nas enfermarias, ele conseguia fazer com que nós, estudantes, tivéssemos cuidado com o contágio, mas que perdêssemos o receio de lidar com os pacientes”. Ainda segundo Cerqueira, por ser um grande orador, José Silveira fazia com que as aulas teóricas se tornassem menos cansativas, já que o assunto era bem específico. Inesquecível D. Ivonne Se é verdadeiro o ditado que diz “por trás de um grande homem, sempre existe uma grande mulher”, José e Ivonne Silveira formavam o seu exemplo vivo. Unidos de maneira “torta” para a época (ambos eram comprometidos quando se conheceram), eles simbolizaram amor e companheirismo até o final da vida. “Nunca vi um casal tão completo”, afirma Ione Scherer, secretária particular de José Silveira por cerca de 30 anos, e responsável pelo Memorial, localizado no prédio do Ibit. Quando se conheceram, em 1947, José Silveira já havia criado o Ibit. Ivonne dirigiu-se ao consultório apresentando sintomas de comprometimento da saúde, que logo foram diagnosticados por Silveira como de fundo emocional. Os encontros transcenderam as simples consultas, iniciando assim a história de amor entre os dois. Silveira desmanchou o noivado, e Ivonne separou-se do marido de forma dolorosa, já que na época não existia o divórcio. Só com a morte deste, o casamento pôde ser oficializado. D. Ivonne abraçou a causa do marido como sua. Foi ela a grande responsável pela obra de assistência social amparada pelo Ibit. Um dia, conversando com o marido, atentou para o fato de que, se os doentes não tinham como se alimentar direito, o tratamento não tinha o êxito desejado. A partir de então, formou uma grande rede de solidariedade, com distribuição de alimentos, roupas etc. “Durante muitos anos, ela cuidava de tudo sozinha, com algumas auxiliares, costurando roupas, reunindo alimentos, numa salinha no Ibit. D. Ivonne foi símbolo de caridade e bondade. Fico bastante emocionada ao falar dela”, conta Ione Scherer. Os altos índices de cura apresentados pelo Ibit são atribuídos à associação do tratamento médico com o serviço social oferecido. “A ajuda social é um fator determinante, já que tuberculose e fome estão intimamente relacionadas”, afirma Júlio Oliva, professor aposentado da Faculdade de Farmácia da Ufba, que por 30 anos trabalhou no Ibit. O trabalho iniciado por Ivonne Silveira continua sendo feito pela Fundação, que possui programas de distribuição de cestas básicas, vales-transporte etc. A ausência de filhos em momento algum abalou o casal. “O Ibit foi o filho que eles não tiveram. Acredito que por isso nunca tenham sentido falta. Nós também, funcionários do Ibit, fomos todos filhos deles…”, diz Ione. A morte de D. Ivonne, em 2000, foi um choque na vida de José Silveira. Sua saúde, já debilitada, piorou com a perda da companheira. O mestre Silveira faleceu no dia 3 de abril de 2001. Em testamento, deixou seus bens para o Ibit e para o Núcleo de Incentivo Cultural de Santo Amaro, o Nicsa, por ele criado há 17 anos, em sua cidade natal.
José Silveira: os 100 anos de um mestre
22/12/2004 | 02:00