Em 11 anos, o Brasil perdeu 38,7% dos leitos de internação psiquiátricos que possuía para atendimento de pacientes no âmbito da rede pública. Em 2005, eram 40.942 unidades. Em dezembro de 2016, os registros do Cadastro Nacional de Estabelecimentos de Saúde (CNES) computavam apenas 25.097, um número que deve ser reduzido ainda mais com a manutenção da política governamental de desestímulo à existência de serviços que ofereçam acesso a esse tipo de tratamento.
Apesar do crescimento da população, que entre 2005 e 2016 cresceu 12%, e dos problemas decorrentes do aumento do consumo de drogas e de outros transtornos psiquiátricos, a mudança do perfil dessa rede de atenção tem se consolidado. Além da queda na quantidade de leitos de internação, também foi reduzido o número de unidades hospitalares que se dedicavam ao atendimento de pacientes com necessidade de assistência psiquiátrica. No mesmo período, o total de serviços com essa vocação caiu de 228 para 143, ou seja, 37%.
Nos estados, o problema se materializou de diferentes formas. As maiores quedas no volume de leitos de internação psiquiátricos ocorreram em São Paulo (-5.277), Rio de Janeiro (-4.240), Pernambuco (-2.102) e Minas Gerais (-1.880). Estes números refletem o déficit em termos absolutos. Contudo, do ponto de vista proporcional, o ranking indica, por ordem decrescente, o Tocantins, com perda de 91% (de 160 para 15 leitos), seguido do Espírito Santo (78%, de 620 para 134), Pernambuco (64%, de 2.293 para 1.191). Fazem parte do cálculo tanto os leitos em hospitais psiquiátricos como àqueles em hospitais gerais.
A justificativa do Ministério da Saúde para dar seguimento à sua política de fechamento de leitos de internação psiquiátricos, assim como de serviços voltados para este tipo de assistência, se baseia na Lei 10.216/01, que estabelece novos parâmetros para o segmento, privilegiando-se uma abordagem voltada para atenção ambulatorial, onde os pacientes contariam com cuidados durante o dia e retornariam para casa à noite. Contudo, o modelo desconsiderou as necessidades daqueles que precisam de acompanhamento intenso como parte de seu tratamento, restringindo a possibilidade de internação.
Quanto menos leito psiquiátrico, melhor, entende o Ministério da Saúde. Seguindo esse entendimento, foi editada a Portaria 1.631, em 2015, a qual define a necessidade mínima de um leito para cada 23 mil habitantes, o que dá 0,04 leitos para cada grupo de mil habitantes. Porém, os cortes têm sido tão severos que muitos estados ficaram abaixo desse limite. Após os ajustes mais recentes, no Espírito Santo e em Roraima essa proporção ficou em 0,03. No Pará e Rondônia, está em 0,02. No Tocantins, a razão é de 0,01 leitos por mil habitantes.
A Portaria 1.631/2015 substituiu a Portaria 1.001/02, editada logo após a edição da reforma psiquiátrica, que estabelecia o percentual de 0,45 leitos psiquiátricos por mil habitantes. O percentual estabelecido em 2015 é onze vezes menor do que àquele definido em 2002. “Discordamos frontalmente dessa redução. Ela é arbitrária e não está amparada em nenhuma experiência internacional”, enfatiza o 3º vice-presidente do Conselho Federal de Medicina (CFM), Emmanuel Fortes, que também coordenou a Câmara Técnica de Psiquiatria da autarquia. Para ele, o percentual de 0,45 leitos era razoável e dava segurança ao atendimento.
Na Inglaterra e no Canadá, que têm modelos públicos parecidos com o Sistema Único de Saúde (SUS), essa proporção é de 0,58 e 1,90 leitos de internação psiquiátricos por mil habitantes, respectivamente. Nos Estados Unidos e na Alemanha, os dados mostram que essas razões são de 0,95 e 0,76. Na América Latina, os números seguem a mesma tendência em outros países. Por exemplo, o Uruguai possui um indicador igual a 0,54 leitos por 1000 habitantes, enquanto na Argentina esse índice é de 0,68.
De qualquer modo, no Brasil, os números podem estar longe de espelhar a realidade, o que tornaria a situação ainda pior. De acordo com especialistas, há indícios de que o CNES esteja desatualizado e, por isso, os números sejam menores. No Piauí, por exemplo, consta a existência de 217 leitos de internação psiquiátricos para atender uma população de três milhões. Só que o número é questionado por lideranças locais, que asseguram que há 160 unidades disponíveis.
O ex-presidente da Associação Brasileira de Psiquiatria, Antônio Geraldo, que dirigiu a entidade de 2011 até meados de fevereiro deste ano, também duvida da veracidade dos dados informados pelo Governo. “Os leitos que eles dizem existir são de fantasia. Quero que me apontem quais hospitais gerais internam pacientes psiquiátricos em surto. Quando muito, fazem o primeiro atendimento e já encaminham para o hospital especializado”, desafia.
Tese de doutorado defendida pelo psiquiatra Maurício Lucchesi aprovada na Faculdade de Medicina da USP, em 2008, aponta que o raciocínio pode estar certo. Segundo Lucchesi, em 2006, de 313 hospitais gerais brasileiros, apenas 97 (31%) tinham seis ou mais leitos de internação em psiquiatria em com condições de atendimento. Os demais, não estavam autorizados a funcionar. Em 2014, para o Ministério da Saúde, 187 hospitais gerais estavam habilitados a oferecer este tipo de assistência, totalizando 888 leitos.
No Brasil, os leitos remanescentes têm que dar vazão a uma enorme demanda. De acordo com estimativas do Ministério da Saúde, 3% da população sofre de transtornos mentais graves; 6% de problemas mentais decorrentes do uso de álcool e outras drogas e 12% vão necessitar de algum atendimento em saúde mental em algum momento da sua vida.
“Acredita-se que há 25 milhões de pessoas que necessitam de algum atendimento psiquiátrico, sendo que terão enorme dificuldade de contar com a integralidade da assistência, pois o Governo, ao contrário de reforçar todas as etapas dos cuidados possíveis, adotou uma estratégia que prejudica aqueles que, em algum momento de sua história clínica, precisarão de um suporte hospitalar”, afirmou Emmanuel Fortes.
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