O Conselho Federal de Medicina (CFM) recomendou que os médicos de todo o país exijam o boletim de ocorrência (BO) como “instrumento preliminar” para a realização do aborto legal em caso de gravidez resultante de estupro (leia abaixo). A medida inviabiliza a aplicação de norma técnica do Ministério da Saúde, lançada no dia 22 de março, que dispensa a necessidade do documento. O Código Penal, que permite o aborto nessa situação, não exige o BO. Norma anterior do ministério, de 1998, colocava o boletim de ocorrência como documento obrigatório. A mesma orientação consta no mais recente manual de orientação da Federação Brasileira das Associações de Ginecologia e Obstetrícia (Febrasgo). Segundo o presidente do CFM, Edson de Oliveira Andrade, a decisão foi tomada em razão da polêmica envolvendo o ministério e o presidente do Supremo Tribunal Federal, Nelson Jobim, que disse que os médicos que seguirem a norma do ministério não estão livres de processo criminal. “Os médicos ficaram em uma situação de extrema fragilidade, diante das orientações contraditórias. Quando a autoridade máxima da Justiça vem a público e diz que o BO é necessário, optamos pela prudência”, afirma. O ministro da Saúde, Humberto Costa, afirmou ontem no Rio que não vai revogar a norma. Segundo Costa, a medida poderá ser aperfeiçoada, em entendimentos com o STF, para que haja garantias de que médicos não sofram conseqüências legais ao segui-la. “Em princípio, não vamos fazer nenhuma mudança na norma. O entendimento dos juristas que nos assessoraram e do próprio presidente do STF [Nelson Jobim] é que a lei não exige especificamente o BO. O que a jurisprudência exige é que o profissional tenha certeza de que se trata de um caso de estupro”, disse. O ministro, no entanto, afirmou que poderão ocorrer alterações: “Mas não será com a inclusão da obrigatoriedade do boletim de ocorrência. Estamos consultando o presidente do STF e discutindo dentro do próprio grupo que elaborou a norma uma forma de eximir o médico de culpa ou responsabilidade caso, mais à frente, aquela situação não venha a se concretizar como, de fato, uma gravidez após estupro”. Costa afirmou ainda que os dados que constarem da declaração a ser feita pelos médicos podem ser usados pela Justiça ou pela polícia para investigar casos de suspeita de que não houve estupro. “É óbvio que não é papel do serviço de saúde acobertar nenhum ato ilegal. No entanto, ele tem que estar preocupado principalmente com a garantia de saúde da mulher e de que ela possa ter atendimento adequado. Foi isso que norteou a norma. Qualquer mudança que venha a acontecer será no sentido de aperfeiçoá-la a partir de entendimento com o STF.” Uma das sugestões do CFM é que o Estado crie condições protetoras à mulher vítima de violência sexual, como o deslocamento de policiais treinados para dentro do ambiente hospitalar. Na avaliação do presidente do CFM, o projeto do governo de assistência à mulher vítima de violência é muito bom, mas precisa ser “melhorado”, para evitar os questionamentos jurídicos. “A violência sexual é o crime que justifica a realização do aborto legal. Para que esse crime seja caracterizado, é necessário o BO.” Para o ginecologista Jorge Andalaft Neto, presidente da comissão de violência sexual e aborto legal da Febrasgo, a questão da aplicação da norma ainda está “muito longe de ser resolvida”. “As interpretações jurídicas não são unânimes e os médicos, especialmente os que estão longe dos grandes centros, sentem-se inseguros.” O manual da Febrasgo que exige a cópia do BO para aborto legal em gravidez após estupro foi elaborado no mesmo período em que a resolução do ministério. Segundo Andalaft Neto, não houve tempo para adaptar o manual às novas orientações do ministério, mas os médicos vão receber o texto novo da norma. Exigência de BO para aborto legal O Conselho Federal de Medicina frente à recente polêmica sobre a exigência de elaboração de Boletim de Ocorrência (BO) para a execução de aborto legal previsto no artigo 128, inciso II, do Código Penal Brasileiro, envolvendo o Ministério da Saúde e o Presidente do Supremo Tribunal Federal, Ministro Nelson Jobim, e considerando a imensa fragilidade a que os médicos envolvidos nestes atendimentos ficaram submetidos, em decorrência das orientações contraditórias apresentadas, orienta todos os médicos brasileiros para que exijam a apresentação do referido Boletim de Ocorrência (BO) como instrumento preliminar para a execução do aborto legal. Entende-se, ainda, que o programa do Ministério da Saúde de assistência à gestante vítima de violência representa um grande avanço na qualidade da atenção à saúde e à dignidade da mulher merecendo ser prestigiado e apoiado, devendo-se, contudo, respeitar outros valores sociais, entre eles, a luta contra a violência com a identificação dos agressores e suas punições. Se há o reconhecimento de que o aparato policial do Estado é incompetente e, por vezes, até constrangedor com as já sofridas vítimas, impõe-se a sua mudança e a criação de condições protetoras da mulher e ao mesmo tempo eficientes na identificação e punição dos agressores. Tudo isso pode estar acoplado em um mesmo projeto e ambiente, deslocando-se a polícia, já humanizada e educada para o trato com estas situações, para dentro do ambiente assistencial-hospitalar, onde, em conjunto com outros profissionais, possa o registro da violência se dar com total proteção física e emocional à mulher. Edson de Oliveira Andrade Presidente do Conselho Federal de Medicina Fonte: Folha de S. Paulo, edição de 19/04/2005
CFM exige boletim de ocorrência para fazer aborto
20/04/2005 | 03:00