A Resolução CFM nº 2.265/2019 prevê a ampliação do acesso ao atendimento a essa população na rede pública e estabelece critérios para maior segurança na realização de procedimentos com hormonioterapia e cirurgias de adequação sexual
Com a preocupação de colaborar com a melhoria da assistência em saúde às pessoas com incongruência de gênero, o Conselho Federal de Medicina (CFM) atualizou parâmetros para o atendimento dessa população no País. Os pontos constam da Resolução nº 2.265/2019, publicada na edição do Diário Oficial da União (DOU) desta quinta-feira (9). O texto aprovado pelo Plenário do CFM resultou de longo processo de discussão e análise, concluído após mais de dois anos. Além de aspectos éticos e legais, foram analisados diferentes estudos clínicos sobre o assunto na tentativa de formular um documento moderno e ancorado em critérios técnicos sólidos.
Pela Resolução nº 2.265, a atenção integral à saúde do transgênero deve contemplar todas as suas necessidades, garantindo seu acesso, sem qualquer tipo de discriminação, aos serviços nos níveis das atenções básica, especializada e de urgência e emergência. O texto estabelece também que a assistência médica ao transgênero deve promover atenção integral e especializada nas fases de acolhimento, acompanhamento ambulatorial, hormonioterapia e procedimentos clínicos, cirúrgicos e pós-cirúrgicos.
Apesar de levar em consideração aspectos já previstos pela Política Nacional de Saúde Integral de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais (Portaria GM/MS nº 2.836/11) e pelos critérios para realização do Processo Transexualizador no SUS (Portaria GM/MS nº 2.803/13), ambos elaborados no âmbito do Ministério da Saúde, espera-se que a Resolução do CFM contribua para a qualificação do atendimento às pessoas com incongruência de gênero, ampliando o escopo de serviços aos quais esse grupo passará a ter acesso na rede pública.
Gênero – A incongruência de gênero acontece quando o indivíduo não se reconhece com o sexo identificado ao nascer. Homens transexuais/transgênero são aqueles nascidos no sexo feminino, mas que se identificam como sexo masculino. Já a mulher transexual/transgênero é aquela nascida no sexo masculino, mas se identifica como do sexo feminino. Travesti é a pessoa que se identifica e se apresenta com o gênero oposto, porém aceita sua genitália.
A afirmação de gênero é o procedimento terapêutico multidisciplinar que, por meio de hormonioterapia e/ou cirurgias, permite à pessoa adequar seu corpo à sua identidade de gênero. Pelo texto publicado no DOU, a pessoa com incongruência de gênero será incorporada num fluxo assistencial, que indicará a melhor abordagem e os procedimentos necessários para cada caso.
A norma do CFM esclarece que dessa equipe deverão fazer parte psiquiatra, endocrinologista, ginecologista, urologista e cirurgião plástico, sem prejuízo de outras especialidades médicas que atendam às necessidades de cada caso, além de outros profissionais da saúde necessários às demandas do indivíduo. Em situações onde o paciente tiver menos de 18 anos, será exigida a presença do pediatra na equipe.
A Resolução diz ainda o atendimento médico deve contar com anamnese, exame físico e psíquico completos, assim como com a identificação do paciente pelo seu nome social e de registro, incluindo sua identidade de gênero e sexo ao nascer. A depender da idade, as ações sugeridas deverão envolver pais ou responsáveis legais de crianças ou adolescentes. Para este grupo, a assistência deve estar articulada com escolas e também com instituições de acolhimento.
Critérios – O debate que levou à formulação do texto foi amplo e exaustivo. Além do plenário do CFM, contribuíram no processo representantes do Ministério da Saúde, do Conselho Federal de Psicologia (CFP), do Conselho Federal de Serviço Social (CFESS) e de diferentes sociedades de especialidades médicas que mantém interface com o tema, como psiquiatria, endocrinologia, cirurgia plástica, urologia e pediatria. Também foram ouvidas lideranças de movimentos sociais organizados que se dedicam ao assunto, bem como pais de crianças e adolescentes com diagnóstico de incongruência de gênero e gestores de hospitais que já realizam esses atendimentos.
Dentre os cuidados definidos, a Resolução nº 2.265/2019 proíbe a realização de procedimentos hormonais ou cirúrgicos em pessoas diagnosticadas como portadoras de transtornos mentais graves. Também se exige o conhecimento pelos pacientes de benefícios e riscos envolvidos no processo, como a possibilidade de esterilidade. Nesse sentido, qualquer procedimento deve ser iniciado apenas após assinatura de termo de consentimento livre e esclarecido. No caso de menores de 18 anos, é necessário ainda a apresentação de um termo de assentimento.
Uma diferença importante entre a nova resolução (nº 2.265) e a anterior (nº 1.955) é que o texto atualizado contempla questões como a realização de bloqueio puberal, que é considerando ainda experimental (sujeito às regras de protocolos de pesquisa aprovados pelo sistema CEP/Conep), e de hormonioterapia cruzada, que antes não eram previstas. Com a norma revogada, a que foi publicada nesta semana ainda regulamenta os processos cirúrgicos relacionados ao atendimento dos casos.
O bloqueio puberal é a interrupção da produção de hormônios sexuais, impedindo o desenvolvimento de caracteres sexuais secundários do sexo biológico pelo uso de análogos de hormônio liberador de gonadotrofinas (GnRH). A hormonioterapia cruzada é a forma de reposição hormonal na qual os hormônios sexuais e outras medicações hormonais são administradas ao transgênero para feminização ou masculinização, de acordo com sua identidade de gênero.
Hormonioterapia – A Resolução CFM nº 2.265/2019, dentre os pontos definidos, ressalta que o tratamento hormonal cruzado só poderá ser iniciado a partir dos 16 anos. Cada pessoa será avaliada pela equipe multiprofissional envolvida no atendimento, pois o desenvolvimento se manifesta de forma diferente em cada criança ou adolescente. Essa mudança também reforça os mecanismos de segurança para essas situações.
Por sua vez, a partir dos 18 anos, a Resolução do CFM reitera que a hormonioterapia cruzada deverá ser prescrita por médico endocrinologista, ginecologista ou urologista, todos com conhecimento científico específico, com a finalidade induzir características sexuais compatíveis com a identidade de gênero.
As doses dos hormônios sexuais a serem adotadas devem seguir os princípios da terapia de reposição hormonal para indivíduos hipogonádicos (com deficiência funcional das gônadas que pode acarretar retardamento do crescimento e do desenvolvimento sexual), de acordo com o estágio puberal.
Os hormônios utilizados são testosterona (para induzir o desenvolvimento dos caracteres sexuais secundários masculinos nos homens transexuais), estrogênio (para induzir o desenvolvimento dos caracteres sexuais secundários femininos nas mulheres transexuais e travestis) e antiandrógeno, que pode ser utilizado para atenuar o crescimento dos pelos corporais e as ereções espontâneas. O uso de estrógenos ou testosterona deve ser mantido ao longo da vida do indivíduo, monitorando-se os fatores de risco.
Cirurgias – Com relação aos procedimentos cirúrgicos de adequação para atender pessoas com incongruência de gênero, a Resolução nº 2.265/2019 estabeleceu que podem ser realizados apenas depois de 18 anos de idade, sendo exigido que o candidato tenha sido submetido anteriormente a, no mínimo, um ano de acompanhamento por equipe multiprofissional e interdisciplinar.
O texto diz, ainda, que na fase pré-operatória a hormonioterapia cruzada será supervisionada por um endocrinologista, ginecologista ou urologista, que avaliará se as transformações corporais atingiram o estágio adequado para a indicação de cirurgias. Os procedimentos cirúrgicos para a afirmação de gênero considerados válidos pelo CFM são categorizados em dois grupos.
As cirurgias para afirmação de gênero do masculino para o feminino são: neovulvovaginoplastia (a qual poderá ser realizada com uso de diferentes técnicas descritas na Resolução a partir da avaliação do paciente); e a mamoplastia de aumento. Por sua vez, os procedimentos de afirmação de gênero do feminino para o masculino compreendem a mastectomia bilateral; cirurgias pélvicas (histerectomia e ooforectomia bilateral); e cirurgias genitais (neovaginoplastia e faloplastia por meio da metoidoplastia – retificação e alongamento do clitóris, após estímulo hormonal).
A neofaloplastia, que consiste na construção de órgão masculino com uso de pele e músculos de antebraço ou de outras regiões, é classificada como experimental, devendo ser realizada somente mediante as normas do Sistema CEP/Conep. Para complementar as faloplastias (metoidoplastia e neofaloplastia), podem ser realizadas uretroplastia (em um ou dois tempos) com enxertos de mucosa vaginal/bucal ou enxerto/retalhos genitais; escrotoplastia; e colocação de prótese testicular em primeiro ou segundo tempo.