Não existem estimativas exatas em relação ao assunto, mas são poucos os médicos negros no Brasil. Em 2000, segundo dados do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais (INEP), obtidos através dos questionários sócio-econômicos do Exame Nacional de Cursos (Provão), do total de alunos que se formaram em Medicina, apenas 1% era negro e 12,3% eram pardos. Quantos médicos negros você conhece? Quantos ocupam cargos de chefia, em hospitais, clínicas ou entidades médicas? São poucos os nomes que vêm à mente. A situação do negro no campo da Medicina é um reflexo da situação encontrada na sociedade brasileira, em que o negro ainda não obteve as mesmas chances de crescimento social, e está em desvantagem na distribuição de renda. Segundo os dados do Censo de 2000, feito pelo IBGE, o total da população afro-descendente no país é de 45,3%. A média de anos de estudo dos negros é mais baixa que as dos brancos, 4,6 contra 6,6 anos. A situação financeira precária é um traço comum nas dificuldades que os médicos negros enumeram ao relatarem como foi concluir o curso. Ex-conselheiro do Cremeb, Ildefonso do Espírito Santo, 80 anos de idade, dos quais 48 dedicados à Medicina, decidiu continuar seus estudos até chegar ao nível universitário com muita dedicação e força de vontade. De origem humilde, nunca sofreu nenhum ato explícito de preconceito, mas sempre teve consciência de que ele existe, em todos os níveis da sociedade. “Eu procuro remontar as origens e as causas (do preconceito) e pensar que contribuição eu posso dar para amenizar isso”, declara. Segundo a pedagoga e pesquisadora da UNEB e da UFBA sobre questões raciais, Delcele Queiroz, o que acontece hoje é reflexo de uma abolição da escravatura que não deu condições aos negros de se inserirem na sociedade. “A pobreza em que foi colocada essa população faz com que hoje essas pessoas ainda estejam em desvantagem. É uma razão histórica”. Ela lembra, no entanto, que os imigrantes europeus que vieram ao país no início da República, em condições de subemprego e miséria, encontraram melhores condições de ascensão social. “Além da situação de pobreza, havia algo que barrava a possibilidade da população negra se desenvolver (socialmente), que era justamente o racismo, a imagem negativa que tinham os negros perante o restante da sociedade”. Negros e Universidade São poucos os negros encontrados em áreas de alta procura no vestibular, como Medicina, Direito, Jornalismo, etc. Segundo dados do concurso de 2000 da Ufba, 65,4% das vagas do curso de Medicina eram ocupadas por brancos, enquanto que a população branca do Estado é de apenas 20%. “Temos muito menos afro-descendentes do que o esperado”, afirma José Tavares Neto, diretor da Faculdade de Medicina da Ufba. A Ufba é a única instituição, na Bahia, com curso de Medicina que possui estatísticas em relação à etnia dos alunos. A Universidade Estadual de Feira de Santana (Uefs), porém, incluiu o item cor da pele no questionário de inscrição do processo seletivo para o primeiro semestre deste ano. As estatísticas ainda não estão prontas. Especialista em Medicina Esportiva, Josias Ribeiro, acredita que as maiores dificuldades que enfrentou foram mesmo de ordem financeira. Segundo o médico, a sociedade costuma ser mais preconceituosa com os negros que possuem uma renda inferior. Formado pela Escola Bahiana de Medicina, nunca sofreu nenhum tipo de discriminação, e já foi procurado por alguns pacientes pelo fato de ser afro-descendente. “Existe confiança por parte do paciente quando ele vê um médico de cor”, afirma. Josias Ribeiro faz parte da Comissão Brasileira Antidoping e é 2º tesoureiro da ABM. Para a ginecologista e obstetra Lúsia Bastos Metzer, a dificuldade no acesso aos cursos de Medicina também estaria relacionada à falta de oportunidades de um ensino de qualidade. “Os alunos de escolas particulares e públicas competem em desigualdade de condições, pois os últimos estão menos preparados”. Na sua vida profissional, não encontrou maiores dificuldades pelo fato de ser afro-descendente, ou discriminação pelo fato de ser mulher. Para ela, a Medicina é uma área em que o preconceito tem pouco espaço, pois “a capacidade intelectual é mais valorizada”. Thiago Novais, negro e aluno do oitavo semestre da Faculdade de Medicina da UFBA, acredita que se não tivesse a oportunidade de estudar em colégios particulares e ter feito cursos de inglês e pré-vestibular, dificilmente teria sido aprovado para o curso. Mas o fato de pertencer à classe média não o privou de passar por um constrangimento na portaria do Hospital das Clínicas há quatro meses. Acompanhado por um grupo de colegas, foi o único requisitado a mostrar identificação para ter acesso ao hospital. “Afirmar que houve discriminação, eu não posso, porque isso não é de minha competência dizer. O que eu posso dizer é que eu me senti discriminado”. Thiago entrou com um processo na administração do HUPES para que seja apurado se houve algum tipo de preconceito contra ele. Sistema de cotas divide opiniões A aplicação do sistema de cotas, um assunto polêmico, vem sendo apontada por alguns como alternativa para diminuir a distância entre negros e brancos nas oportunidades de educação e emprego. As políticas de ação afirmativa, como as cotas, têm origem nos anos 60, nos Estados Unidos, com a luta de Martin Luther King e outros líderes negros. No entanto, só há cerca de cinco anos o assunto começou a ser discutido no Brasil. Apenas a Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ), a Universidade de Brasília (UnB) e a Universidade Estadual da Bahia (UNEB) adotam o sistema de cotas para afro-descendentes em seus vestibulares. A Uneb destina, desde o vestibular de 2000, 40% de suas vagas para alunos afro-descendentes oriundos de escolas públicas. Em Brasília, um Grupo de Trabalho Interministerial, coordenado pelo MEC, discute políticas públicas de acesso e permanência da população negra no ensino superior. Uma das propostas que será analisada pelo presidente Lula é a criação de uma medida provisória autorizando as universidades públicas a implantarem o sistema de reserva de cotas, para incentivar ações nesse sentido e evitar contestações na Justiça. A exemplo de outras universidades públicas do país, a Ufba discute como e quando irá aplicar o sistema de cotas no vestibular. Na Uefs, representações estudantis como o Diretório Central dos Estudantes e Diretórios Acadêmicos, também estão promovendo debates sobre o tema. Apesar de entenderem a importância das ações afirmativas, a Escola Bahiana de Medicina e Saúde Pública e a Uesc ainda não têm propostas concretas de adoção do sistema. “A nossa opinião é a de que devem ser desencadeadas políticas de inclusão social e ações afirmativas que facilitem o acesso de minorias às universidades e ao mercado de trabalho. Entretanto, estas devem ser abrangentes e não traduzidas em um sistema de cotas”, afirma Mércia Margotto, coordenadora do colegiado do curso de Medicina da Uesc. Já a direção da Escola Bahiana, única instituição particular a oferecer o curso de Medicina, declarou que, por não haver discussões, a “matéria está em aberto”.

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