A revista científica Nature Medicine publicou, nesta quarta-feira (01), um artigo em defesa da Resolução CFM nº 2.427/2025, que regulamenta a assistência médica a pessoas transgênero no Brasil. “Com base em princípios legais, científicos e bioéticos, as normas adotadas pelo Conselho Federal de Medicina (CFM) do Brasil por meio da Resolução CFM nº 2.427/2025 não representam um retrocesso nos direitos das pessoas transgênero. Ao contrário, constituem o exercício legítimo de um dever institucional: assegurar a segurança, a eficácia e a integridade científica das práticas médicas no Brasil, especialmente aquelas de alto impacto biológico em populações vulneráveis, como crianças e adolescentes”.
Conforme destacado na Nature, a principal razão para a publicação da norma é a baixa qualidade das evidências científicas atuais sobre a eficácia e segurança do uso de bloqueadores de puberdade e da terapia hormonal cruzada em adolescentes com disforia de gênero. Revisões sistemáticas recentes, como a Cass Review, realizada no Reino Unido, apontam que o grau de certeza das evidências é muito baixo em todos os desfechos avaliados, o que justifica a medida.
“O princípio da precaução, neste contexto, não é um instrumento de restrição ideológica, mas uma norma de prudência amplamente aplicada em políticas públicas de saúde quando os riscos futuros são incertos, como no caso de terapias gênicas ou intervenções neuropsiquiátricas. A resolução está em consonância com o artigo 227 da Constituição Federal, que impõe ao Estado, à família e à sociedade o dever de assegurar, como prioridade absoluta, os direitos das crianças e adolescentes à saúde, ao desenvolvimento físico e mental e à proteção contra negligência ou exposição a riscos”, pontua o artigo assinado pelo presidente da autarquia, José Hiran Gallo, pelo vice-corregedor, Francisco Cardoso, e pelos relatores da resolução, Raphael Câmara e Bruno Leandro de Souza.
A resolução do CFM suspende o uso de bloqueadores de puberdade e hormônios cruzados em menores de 18 anos até que haja evidências científicas robustas sobre os riscos e benefícios. A decisão busca proteger a saúde reprodutiva, óssea, cardiovascular e neuropsiquiátrica de adolescentes. “Importante destacar que a norma não impede a oferta de apoio psicológico, psiquiátrico ou social, nem proíbe a continuidade de tratamentos já iniciados antes de sua publicação. Além disso, o CFM instituiu grupo de trabalho para reavaliar continuamente as evidências científicas internacionais e subsidiar futuras atualizações”, pontua o artigo.
O texto também ressalta que a posição do Brasil está alinhada a práticas adotadas em outros países, como no Reino Unido, onde o Serviço Nacional de Saúde (NHS) descontinuou a prescrição de bloqueadores de puberdade fora de ensaios clínicos; na Suécia e Finlândia, onde restringiram as intervenções hormonais a protocolos hospitalares, priorizando acompanhamento psicossocial; e nos Estados Unidos, onde uma ordem executiva federal de 2025 restringiu cuidados de afirmação de gênero em menores de idade.
A norma brasileira estabelece critérios clínicos e éticos para intervenções irreversíveis em adultos, exigindo avaliação psiquiátrica e endocrinológica por no mínimo um ano, além de avaliação cardiovascular. A medida, como lembram os integrantes do CFM, é consistente com diretrizes internacionais, como as da Endocrine Society e da World Professional Association for Transgender Health.
Arrependimento e destransição – Na publicação, os autores ressaltam também que o número de casos de arrependimento e destransição relatados em estudos recentes aumentou nos últimos anos. Entre as décadas de 1970 e 2010, as estimativas de arrependimento eram de apenas 2%. Em achados recentes, em um recorte de 1.359 indivíduos submetidos à hormonização de gênero na Finlândia entre 1996–2019, por exemplo, 7,9% interromperam o tratamento após um tempo médio de acompanhamento de 8,5 anos.
O artigo observa ainda que o risco de descontinuidade pode ser maior em recortes com mais jovens. “Pesquisas recentes sugerem que, à medida que aumenta o número de pessoas que acessam a redesignação de gênero, também crescem os casos de reversão ou interrupção da transição. Por exemplo, cerca de 29% dos adolescentes e adultos no sistema de saúde militar dos Estados Unidos descontinuaram terapias hormonais em até quatro anos após o início do tratamento. Esses achados evidenciam a complexidade e a variabilidade das trajetórias de cuidados de afirmação de gênero”.
Diálogo contínuo – “O texto da resolução não nega o direito à identidade de gênero nem desqualifica as experiências trans. Ele estabelece critérios clínicos e éticos para intervenções irreversíveis em adultos, reconhecendo a complexidade diagnóstica em idades precoces e a elevada prevalência de comorbidades psiquiátricas, como depressão, ansiedade, ideação suicida e transtorno do espectro autista. Cuidado afirmativo não é sinônimo de medicalização precoce ou apressada. Começa com respeito, escuta, apoio de longo prazo e proteção contra danos iatrogênicos”, afirma o artigo.
A publicação na Nature Medicine reforça a posição do CFM em defesa de práticas médicas fundamentadas em ciência, prudência e responsabilidade ética.
Acesse aqui o artigo na íntegra: www.nature.com/articles/s41591-025-03946-7