Representantes do Conselho Federal de Medicina (CFM) esclareceram pontos da Resolução CFM nº 2.378/2024, que proíbe médicos de realizarem o procedimento da assistolia fetal em gestações com mais de 22 semanas decorrentes de estupro. Durante sessão temática organizada pelo Senado, o presidente da autarquia, José Hiran Gallo, agradeceu a oportunidade de apresentar à população a visão da entidade sobre o tema. Além dele, participaram da atividade os conselheiros Raphael Câmara (RJ), relator da norma, Annelise Meneguesso (PB) e Rosylane Rocha (2ª vice-presidente).
Para Gallo, há necessidade de esclarecer “informações distorcidas que, propositalmente, têm trazido confusão na análise da Resolução CFM nº 2.378/2024, que aborda tema difícil e repleto de nuances. Reitero que a verdade – somente a verdade – deve pautar tomadas de decisões. Narrativas tendenciosas precisam ser desconsideradas, pois trazem, em seu bojo, interesses outros que não são os da coletividade”, afirmou, elogiando o espaço aberto pelo senador Eduardo Girão, autor do requerimento para realização da sessão temática.
Contribuições – Após apresentar algumas das contribuições do CFM para a qualificação da assistência e melhoria de acesso dos brasileiros a serviços, José Hiran Gallo ressaltou que as acusações de que a Resolução compromete o programa do Aborto Legal não procedem.
“Nunca, em tempo algum, a edição dessa norma teve como objetivo comprometer a oferta desse serviço em hospitais da rede pública. Trata-se de programa incorporado pelo Estado brasileiro e que deve ser disponibilizado à população, segundo critérios de acesso definidos em lei”, lembrou, ressaltando que cabe ao Ministério da Saúde e aos gestores do Sistema Único de Saúde (SUS) criarem condições para que esses núcleos funcionem de modo a atender às demandas existentes.
Cenários – Atualmente, o Brasil conta com 92 serviços que oferecem o aborto legal para a população, distribuídos em 20 estados. Desse total, apenas 32 são referenciados pelo Ministério da Saúde. Em qualquer um dos dois cenários, a grande maioria desses estabelecimentos está no Sul e Sudeste.
O presidente do CFM lembrou ainda que, em 1999, dez anos após o início do programa do Aborto Legal no Brasil, o Ministério da Saúde já determinava que procedimentos desse tipo só poderiam ser realizados até a 22ª semana de gestação.
“Sobre o funcionamento da rede do Aborto Legal, que se ampliada, poderia reduzir o martírio de vítimas de estupro, os questionamentos devem ser direcionados aos gestores do SUS, cujo silêncio tem contribuído pela dupla penalização da mulher violada. Primeiro, a mulher é vítima do agressor, depois se torna refém da inoperância do Estado, por meios de seus representantes”, acrescentou Gallo.
Sofrimento – Outro ponto abordado em seu pronunciamento foi a crueldade implicada na assistolia fetal. Com base em informações técnicas, o CFM alega que esse procedimento impõe dor e sofrimento a quem o recebe, contradizendo opiniões de alguns grupos. Na sua avaliação, numa gestação de 22 semanas, a mulher já carrega um ser humano formado, com viabilidade de vida fora do útero. Como sistema nervoso e o cérebro, já funcionam sensações dolorosas e de desconforto, alegam os especialistas.
“Não é por acaso que o Conselho Federal de Medicina Veterinária, em 2012, já classificava como método inaceitável o uso dessa substância – o cloreto de potássio – no processo de eutanásia de animais. Será que há situações em que o sofrimento afeta uma vida pode ser considerado aceitável?”, questionou o presidente do CFM.
Competência – O terceiro esclarecimento feito pelos representantes do CFM foi referente ao argumento de que a autarquia não tem competência para estabelecer regras que tratem da atuação do médico, em caso de interrupção da gestação.
Nas apresentações, os expositores explicaram que pela Lei nº 3.268/1957 o CFM tem a outorga de definir os critérios éticos e técnicos para o exercício da profissão médica no País, tendo como objetivo a eficácia e a segurança dos seus atos, como no caso da assistolia fetal.
“Assim, nos causa estranheza questionar a legitimidade do CFM de se manifestar sobre os critérios de assistolia fetal. Ora, em 2012, o Supremo Tribunal Federal (STF) recorreu à nossa Casa para estabelecer os critérios do diagnóstico de anencefalia. Assim, ajudamos a mulher a exercer o seu direito de autonomia nesses casos, evitando que tivesse que recorrer ao Judiciário para interromper uma gestação com essa característica”, sublinhou José Hiran Gallo.
Tempo – Mais adiante, ele acrescentou: “no entanto, a passagem do tempo, faz com que, agora, paire uma dúvida sobre quem acompanha os desdobramentos relativos à Resolução CFM nº 2.378/2024: porque em 2012 a posição técnica do CFM foi considerada válida e, em 2024, ela é apontada como excessiva? ”.
Finalmente, os conselheiros do CFM pediram uma reflexão sobre o tempo gestacional, fundamental para entender a diferença entre os conceitos de aborto e prematuridade, relacionada à viabilidade de vida do feto fora do útero.
Estudos científicos afirmam que a partir da vigésima segunda semana de gestação já existe a chamada viabilidade do feto. Segundo esses trabalhos, a idade gestacional a partir da qual mais da metade dos recém-nascidos sobrevive modificou-se de 30-31 semanas na década de 1960 para 23-24 semanas na última década.
Maturidade – Os prematuros com idade gestacional maior ou igual a 25 semanas ou com peso ao nascer maior ou igual a 600 gramas apresentam maturidade suficiente para sobreviver. Já os recém-nascidos com idade gestacional menor que 23 semanas e peso ao nascer menor que 500g são extremamente imaturos, praticamente sem nenhuma chance de sobrevida livre de sequelas.
Para aqueles com idade gestacional entre 23 e 24 semanas e 6 dias, a sobrevida e os resultados são ainda incertos, constituindo a chamada “zona cinzenta”. Neste caso, a tomada de decisão deve ser baseada numa cuidadosa avaliação de dados pré-natal, idade gestacional, peso e condições clínicas.
“Em todos esses casos falamos de prematuridade. Evidentemente que menor o tempo de gestação mais será exigido do Estado a oferta de infraestrutura médica e hospitalar para dar suporte ao bebê, que precisará de cuidados intensivos para seu desenvolvimento. Da mesma forma, cabe ao Estado oferecer à mulher vítima de violência condições de encaminhar a criança para adoção, caso seja sua decisão”, explicou o presidente do CFM.