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Roberto Magliano de Morais*

 

A discussão sobre o nascimento no Brasil vem ganhando cada vez mais destaque nos últimos anos. Um dos motivos de tamanha mobilização é o fato de o país estar no topo do ranking de cesarianas no mundo. Para alguns, este procedimento é um exemplo do que se convencionou chamar de “violência obstétrica”. Na visão dos críticos, é um ato “medicalizado” que diminui o vínculo entre mães e filhos, e aumenta o risco de morte para ambos.
Não há dúvida sobre a superioridade do parto normal, quando o nascimento acontece da forma mais natural e fisiológica possível. Os benefícios são visíveis, sobretudo entre as mulheres saudáveis, cuja recuperação ocorre em menor tempo. Este tipo de procedimento também dá a elas maior confiança e reduz as chances de complicações em curto prazo. Além disso, como reforça a literatura médica, a cesariana implica em assumir riscos significativos, inclusive em relação ao futuro reprodutivo da mulher.

No documentário O renascimento do parto (2013), o tema foi debatido sob este prisma, enaltecendo-se as inúmeras vantagens do nascimento de forma natural e estimulando-se, inclusive, sua realização em ambiente domiciliar. Quem assistiu a este documentário saiu com a certeza de que a cesariana deve ser evitada a todo custo e que os médicos que a realizam não se preocupam com as gestantes.
O simples ato de oferecer esta opção terapêutica seria o suficiente para classificá-lo como um mau profissional. Por outro lado, além dessa visão estereotipada e negativa dos médicos, o filme exaltou a figura das doulas, rasgando elogios à sua presença no local do parto em detrimento da do obstetra.

A palavra “doula” vem do grego e significa “mulher que serve”. Nos tempos atuais, aplica-se àquelas que dão suporte físico e emocional a outras mulheres antes, durante e após o parto. A doula deve atuar como uma ponte, uma interface entre a equipe de atendimento e o casal. É ela que explica os termos médicos e ajuda à parturiente, entre outras coisas, a adotar posições mais confortáveis para o trabalho de parto, formas eficientes de respiração e práticas naturais para aliviar desconfortos, como banhos e sessões de relaxamento.

Porém, deve-se ressaltar que a doula não pode executar qualquer ato médico. Ela não está apta a fazer ou prescrever exames, e não pode diagnosticar nem determinar tratamentos. Também não é sua função discutir procedimentos com a equipe ou questionar decisões. Enfim, como participante do processo, não lhe cabe cuidar da saúde da mulher e nem do recém-nascido; ou seja, não pode substituir os profissionais tradicionalmente envolvidos na assistência ao parto.

Foram muitas as distorções geradas no vácuo criado por esse movimento favorável ao “parto humanizado”, popularizado pelo documentário de 2013. Na esteira de seu lançamento, vários estados, entre eles a Paraíba, aprovaram projetos de lei que obrigam a presença de doulas na sala de parto das maternidades públicas e privadas. A redação destas regras, praticamente a mesma em todos os lugares, abre brechas para vários questionamentos.
 
Em primeiro lugar, os textos não são nada claros em relação ao papel e ao perfil dessas mulheres. Ora, se a doula não é uma profissão, mas uma atividade certificada pela Classificação Brasileira de Ocupações (CBO), quais são os critérios para reconhecê-las e admiti-las numa maternidade? Qualquer pessoa pode se declarar doula e acompanhar o parto? Existe um treinamento para realizar essa atividade? Quem pode prepará-la para a função e quais são as regras para seu exercício?
 
Mas as questões não param por aí. Afinal, qual o objetivo destas leis que têm sido aprovadas Brasil afora: melhorar a assistência obstétrica ou desviar o foco da opinião pública do cenário preocupante em que está inserido o fluxo de atendimento às gestantes, parturientes e recém-nascidos no país?

Em setembro de 2015, na maior maternidade de João Pessoa, um parto normal de trigêmeos – assistido por um experiente obstetra de plantão – foi alvo dos comentários do prefeito da cidade, Luciano Cartaxo. Na época, ele exaltou publicamente a presença de uma doula e nem sequer mencionou que fora um habilidoso parteiro quem realizou as manobras necessárias para ajudar a mãe durante aquele parto difícil.

Em nosso país, as gestações de alto risco não são reconhecidas no pré-natal, e muitas mulheres morrem como era comum há 50 anos – de hipertensão, hemorragia e infecção. As equipes de atenção básica são incompletas, muitas delas sem médicos, existem poucas e precárias maternidades, sempre lotadas e sucateadas, com falta de medicamentos e profissionais de saúde, e a prática da “ambulancioterapia” é quase uma regra.

Infelizmente, as escolhas das atuais gestões não apontam soluções para tantos problemas. Por exemplo, os investimentos governamentais visando a qualidade do pré-natal beiram a irresponsabilidade. Os números testemunham a inoperância, como ocorreu em 2013 quando foram somente utilizados 10% dos R$ 240 milhões destinados à Rede Cegonha, criada para qualificar este serviço na rede pública.

Esse cenário, evidentemente, repercute nos indicadores de mortalidade materna. Consoante a Organização Mundial de Saúde (OMS), já existem evidências de que a qualidade da assistência e a segurança são elementos mais importantes do que a via de parto quando se aborda este tema. No Brasil, a infraestrutura deficiente e as condições inadequadas de trabalho tornam o parto um procedimento arriscado para mães e filhos.

Examinando o mapa da mortalidade materna do Brasil, percebe-se que nas regiões Sul e Sudeste – locais com melhores indicadores de desenvolvimento humano e onde o número de cesarianas registradas é maior – a incidência de óbitos entre as gestantes e parturientes é menor do que as das regiões Norte e Nordeste. Esse paradoxo sugere que a qualidade na assistência pré-natal é tão importante quanto a via de parto.

Segundo dados do Comitê sobre a Eliminação de todas as Formas de Discriminação contra a Mulher (CEDAW), o indicador de mortalidade é absurdamente vergonhoso, colocando o Brasil ao lado de Madagascar e atrás da Bolívia e do Peru no ranking de países que tiveram os piores índices de redução da morte materna nos últimos 10 anos.

Esse conjunto de dados mostra a verdadeira face da violência obstétrica no país, praticada pelo governo contra as mulheres e injustamente transferida para o obstetra, o “soldado” descartável e desvalorizado, que fica no “front” de uma luta arriscada e muitas vezes inglória, pelo direito ao nascimento com dignidade e segurança.

Muitos afirmam que as mulheres são induzidas pelos médicos a escolher o parto operatório, e esses profissionais são acusados de não explicar as consequências e implicações dessa decisão para seu futuro reprodutivo. No entanto, não se reconhece que parcela considerável das pacientes opta por esta via, por sua conta e risco.

Talvez essas mulheres tomem essa decisão por medo da dor, pelo receio de danos ao períneo e à sua sexualidade, ou pode ser que sejam influenciadas por parentes e pessoas próximas. Também é provável que a escolha tenha origem no temor, muitas vezes justificado, de parir numa maternidade brasileira.

A sociedade se encontra diante de uma questão de extrema complexidade, que alguns tentam simplificar equivocadamente, transferindo responsabilidades. Muitos se apropriam da falácia da violência obstétrica e demonizam os médicos, os únicos legalmente habilitados para dar uma assistência completa ao parto, incluindo cirurgias. Ao tentar transformá-los em vilões, deixam evidente uma estratégia bem armada com objetivos claros: mascarar a falta de assistência imposta à população e, por trás do discurso “naturalista”, fragilizar o papel do médico nas relações dentro do mercado de trabalho da área da saúde.

 

* É ginecologista e obstetra, membro da Câmara Técnica de Ginecologia e Obstetrícia do CFM – Núcleo Parto Normal

 

     

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