Escrito por Áureo Augusto Caribé de Azevedo*

No Vale do Capão (pequena vila na zona rural de Palmeiras, BA), uma mulher procurou-me para consulta no ambulatório onde atendo gratuitamente a população local. Tímida, teve dificuldade em dizer o que se passava. Só que sangrava, mas sem certeza se da vagina ou do ânus. Já havia se consultado em uma cidade próxima, mas a medicação não surtira o efeito desejado. Como sempre, eu estava acompanhado por Marilza, a auxiliar de enfermagem que comigo partilha o atendimento. Ela conhece todas as pessoas nativas e seus antepassados; sabe dos jeitos como lidam com as palavras. Às vezes, informa, por exemplo, que um avô do jovem que está na consulta padeceu quadro semelhante à queixa atual. Ou adverte que aquela pessoa, com as mãos cheias de feridas, apresentou quadro idêntico quando criança, coisa que nem a própria tinha lembrança. Em alguns casos, aconselha a receita de plantas medicinais que, por sua experiência, demonstraram-se positivas em casos semelhantes. Marilza, com seu jeito destemperado, logo recitou os seus gastos com o problema de saúde: R$60,00 para deslocar-se até a outra cidade e R$60,00 da consulta, sem contar o preço da pomada receitada. Como, perguntou-me Marilza, gastava tanto se podia dispor de atendimento gratuito? Ela, que já fi zera o tratamento$com bom resultado? Sorri para mim mesmo. A resposta tenho pronta: sou insistente na orientação dietética, o que nem sempre agrada a quem é recalcitrante. Orgulho-me de dizer que em quase 20 anos tive papel importante na remodelação dos hábitos alimentares locais. Antes, não havia horta por aqui; agora, há quem viva da horticultura. Aquela mulher era das recalcitrantes. Com muito tato fiz-lhe uma infinidade de perguntas para obter algumas informações. Com a ajuda de Marilza, consentiu em ser examinada. Logo entendi porque o tratamento não tivera sucesso: pomada para tratar hemorróidas não corrige mioma uterino.

O médico anterior não a interrogara satisfatoriamente e a examinara. Analfabeta, não lera a bula da medicação (e talvez não adiantasse mesmo!). Com um desenho, expliquei-lhe o que se passava. Fez-me algumas perguntas, substituindo a timidez pela curiosidade. Disse-lhe qual seria o tratamento e o resultado esperado. Saiu consciente de seu problema, entendeu tudo o que expliquei, mostrando não tratar-se de pessoa estúpida. Era apenas iletrada. Trabalhando em muitos lugares desse mundão que é o interior do Brasil tenho encontrado muitos iletrados, poucos estúpidos – e, convém frisar, nem todos os letrados são tão inteligentes quanto aparentam.

De outra feita, em Salvador, um homem procurou-me e pagou consulta apenas para que lhe explicasse o que tinha. Queria informações quanto a sua enfermidade, pois o seu médico passara certas medicações e possibilidades de cura. Antes de satisfazê-lo, indaguei-lhe porque não as solicitara ao médico que o acompanhava. Redargüiu-me dizendo que o mesmo era muito competente, mas nada falava, apenas receitava. E queria mantê-lo, mas necessitava entender o que ocorria.

Temos aqui dois exemplos de pessoas com diferentes oportunidades de vida. Uma mulher, do interior, que não teve oportunidade de estudar e um homem, engenheiro, cujos rendimentos permitiam-lhe relativa folga financeira. No entanto, ambos eram tratados como escravos.

Explico: supõe-se que na sociedade não haja mais lugar para a escravatura. Parece surpreendente que, nas lonjuras da Amazônia, no âmago do Nordeste, enfim, nos remotos rincões deste Brasil, descubram trabalhadores rurais cativos, sem direitos trabalhistas ou humanos. No mundo contemporâneo, a escravidão é exceção. Mas o que é a escravidão? O que garante a um ser humano sua condição de homem ou mulher livre, dono(a) do próprio destino? Capacitado a entender-se como singularidade, como indivíduo? O que garante isso? Como a educadora Constance Camili, pode-se acreditar que a educação tem papel essencial neste processo. Porém a autonomia, sendo algo pessoal e intransferível conquista, necessita algum tipo de reconhecimento, inclusive nas relações profissionais. Na relação do profissional com o seu cliente. Entre os antigos gregos havia dois tipos de médicos: o dos homens livres e o dos escravos. O médico dos livres tem prazer em informar a seus clientes aquilo que neles se passa, suas supostas causas, conseqüências futuras, tratamentos.

Considera que o cliente deve ter participação ativa em todo o processo. Hipócrates preocupava-se em ensinar a seus discípulos como explicar, em linguagem acessível, às pessoas sob seus cuidados, os processos da doença e da saúde. Percebia o mestre de Cós que o bom profissional terá sempre em si algo de educador, mesmo que não o seja. Já os médicos dos escravos, esses, “correm de um paciente para outro e dão suas instruções sem falar, isto é, sem se demorarem a fundamentar os seus atos… Este médico é um tirano brutal” (Leis, Platão). O mundo, hoje, é muito diferente daquele em que viveu Platão. A tecnologia médica, os conhecimentos científicos, a própria sistemática de atuação na prática da assistência mudou; inclusive o fato de que naquela época, para o médico, no que dizia respeito ao seu comportamento na consulta, havia livres e escravos. Com demasiada freqüência, encontramos atualmente uma conduta única para todos: a mesma dedicada aos escravos.

Uns argumentam que os pacientes (e há que ser paciente mesmo!) são ignorantes, esquecendo-se de que ignorância e burrice não são sinônimos. Outros afirmam que a medicina avançou tanto que a cada dia torna-se mais difícil explicar aos clientes os seus problemas. Saímos de Hipócrates para a hipocrisia! Nunca encontrei ninguém, em minhas andanças pelos sertões e cidades que não entendesse o que eu falava. É claro que não devo usar o termo ‘cefaléia’ quando posso dizer ‘dor de cabeça’. A arrogância é sério impedimento para qualquer comunicação real.

Hoje, nos defrontamos com novos e graves problemas na medicina, na área da bioética. A maior parte deles surgiu graças aos avanços tecnológicos. No entanto, corremos o risco de, ofuscados pela magnitude destes desafios, esquecer outros dilemas éticos que nos atingem e não são derivados de nenhuma nova técnica, mas sim da antiga e habitual maneira humana de atuar no mundo. E para enfrentá-los necessitamos da boa e velha ética, pura e simplesmente, aquela anterior à deontologia médica e que é sua origem. Aquela que pede relações humanas igualitárias.

Reitero que o cidadão livre que exerce a medicina junto a seus iguais, cidadãos livres, está obrigado a ser um educador. Entre o médico e cliente estabelece-se um diálogo com esperadas perguntas, respostas, refutações e explicações, como convém em um estado de comunicação entre pessoas que se respeitam mutuamente. Cumpre lembrar que os gregos, já àquela época, perceberam que o ato de aprender não dependia apenas de um acúmulo de informações. A educação não era uma forma de superposição de conhecimentos, como ocorre no crescimento das rochas sedimentares, onde camadas vão se depositando sobre outras camadas e assim a rocha vai crescendo. Educação é um processo de crescimento orgânico, onde há assimilação (no sentido fisiológico do termo, não piagetiano) de um determinado conteúdo, a partir de suposições ou de conhecimento prévio. A forma de abordagem ou de recepção de um conteúdo depende do estado inicial do continente (o sujeito que aprende). Esta assimilação gera no sujeito uma alteração sistêmica, modificando-o significativamente, porque o conteúdo recém-assimilado gera significado ou só ocorreu porque havia para o sujeito algum significado em sua absorção. O educador (profissional médico, inclusive) deverá abdicar da postura de que o educando não passa de um aluno, alguém destituído de luz, quando em realidade é um estudante, alguém que tem a possibilidade de aprender. Além disso, no caso particular da medicina, entendemos que por mais conhecimento tenha o médico, jamais conhecerá de maneira tão íntima o cliente quanto este a si mesmo. O médico sempre será o outro. Por isso, sempre será um aprendiz do que o outro é. Como conhecerá o seu paciente se não adotar a postura de descobridor? Uma postura, convenhamos, humilde. Diria socrática. Perguntar com a consciência de que não conhece o outro, embora muito saiba de ciência médica (“Tudo que sei é que nada sei”, dizia o velho sábio ateniense).

De certa maneira, ambos ignoram. O cliente ignora o que se passa consigo; o médico ignora quem é aquele que busca por orientação. Ambos estudantes. E, cada um a sua maneira, cientista, no sentido de que cientista é aquele que quer conhecer a verdade através do entendimento, do raciocínio. Por mais que alguém seja ignorante, isto é, por mais que ignore, sempre terá algum tipo de entendimento quanto ao que se passa consigo. Usando o linguajar epistemológico de Karl Popper, tem suas conjeturas quanto ao que sente. E estas não devem ser desprezadas como absurdas apenas porque o indivíduo não utiliza uma terminologia científica quando se expressa. O indivíduo enfermo é a pessoa mais autorizada para ser o sujeito de sua cura (salvo quando se trata de uma criança muito pequena ou em certos casos de impossibilidade). Partindo do que o paciente sabe, refutando-lhe sadiamente as concepções, propondo novos conceitos, discutindo com ele, o médico contribui para que, pela compreensão, aquele sujeito assuma uma postura autônoma no processo do tratamento, o que não significa “fazer o que quer”. A autonomia, base para a liberdade, traz embutida a responsabilidade, onde as atitudes passam a ser pensadas, medidas, decididas e seguidas. Quando o médico (e os demais profissionais de saúde) partilha(m) com o paciente seus conhecimentos, em uma postura educativa, estabelece-se um estado sinérgico onde cada ato contribui significativamente para o processo de cura. Mas o que ocorre com o médico dos escravos? Entre os gregos, este era considerado inferior aos médicos dos cidadãos. Sua formação era de baixa qualidade, tampouco era respeitado como seu colega. Repete-se a história? O que tem acontecido com o respeito que o médico outrora tinha junto a seus concidadãos? Ainda encontramos, notadamente nas lonjuras interioranas, um alto padrão de respeito pelo profissional médico. No entanto, não é novidade para ninguém que este padrão tem sido lentamente solapado desde há algum tempo. Muitas são as causas para este acontecimento e neste opúsculo comento uma das razões para a avaliação dessa perda de reconhecimento profissional.

O que faz do médico um profissional? Da mesma forma que o engenheiro, o biólogo, o arquiteto, o que nos faz pro fissionais é, em grande parte, o senso de responsabilidade para com a nossa profissão. Esta responsabilidade nos obriga a um cuidado para com nossos clientes. Este cuidar passa pela atenção à nossa prática, que deverá ser cuidadosa e ponderada, apoiada na cultura científica, mas não apenas nisso, pois também há a necessidade de centrá-la na pessoa do indivíduo a que chamamos de paciente. Há nisso a obrigação de uma cultura humanista. Para o médico, o ser humano é “a medidade todas as coisas”, usando a conhecida frase do retórico grego, Protágoras. O médico tem como objetivo a pessoa humana, ainda que a veja (para que seu trabalho seja realmente íntegro) sob seu contexto ecológico, sua meta é a saúde humana. Se perde o senso de que cuida de seres humanos, que deve estar voltado para sua formação continuada, que deve estar lidando com o outro reconhecendolhe a humanidade (e não a desumanizante condição de escravo), condena-se a perder sua respeitabilidade porque deixa de ser um profissional. Philippe Perrenoud solicita aos educadores que, como forma de acabar com o fracasso na educação, os professores devem olhar o seu trabalho não como ofício, mas sim como profissão. Assim, este filósofo da educação substitui os termos comuns na antiga Grécia, escravo e cidadão, por ofício e profissão. Quem tem um ofício, repete fórmulas. É um aplicador de procedimentos, real ou supostamente indicados para quaisquer situações padronizadas, não tendo freqüentemente competência para atender aos desafios de situações novas. Já o profissional, conhece a profundidade de sua ação, o que lhe dá competência para discernir quais dos procedimentos complexos que tem à mão escolherá em situações novas.

Hoje, o que tem acontecido com grande quantidade de médicos que “correm de um paciente para outro e dão suas instruções sem falar, isto é, sem se demorarem a fundamentar os seus atos…”? Perderam sua autonomia. Em seu corre-corre, em sua perda da ponderação e do cuidado com o outro, se despro fissionalizam. Tornam-se solicitadores de exames, prescritores de medicações. Seus resultados dependerão da sorte, ou do fato de que a maior parte dos problemas de saúde são comuns e muitos podem ser solucionados até sem intervenção médica. Sendo comuns, atendem a esquemas corriqueiros de tratamento. Além do que, havendo no organismo um estado autopoiético, isso concorre para a recuperação espontânea. Esta conduta, mesmo quando a sorte, a autopoieses ou a doença responde aos esquemas corriqueiros, é insatisfatória. O paciente não foi beneficiado integralmente. Não aprendeu, deixou de conhecer. Quanto de custos financeiros, sociais e corporais isso acarreta? Os custos dessa atitude escravocrata oneram a sociedade, a pessoa atendida e reduz radicalmente a respeitabilidade da profissão médica. Qualquer balconista de farmácia sabe receitar medicações, e o faz, apesar desta atitude ser ilegal; apenas um profissional poderá receitar medicações ou condutas de maneira que o doente sinta sua recuperação acontecer de forma realmente satisfatória. Tal satisfação implica o reconhecimento da humanidade do paciente, contribui educativamente para o conhecimento do que se passa consigo e ajuda-o a descobrir e manter sua autonomia com conseqüente assunção da responsabilidade por si. O médico é um profissional como qualquer outro, no sentido em que presta serviço baseado em determinados conhecimentos prévios. Mas o objeto de seu ofício é a vida humana, o que obriga o profissional médico a ser eticamente mais responsável em sua ação (coisa, aliás, que ocorre com o educador). Nesse caso, o mínimo que se pode pedir, o mínimo, repito, é a solidariedade, virtude que se pratica com aqueles reconhecidos como iguais, pois apesar das diferenças de oportunidades que a sociedade nos oferece, o genoma é o mesmo para todos os seres humanos.

* É médico.

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