Escrito por Oliveiros Guanais*

Definir ato médico é envolver-se nas armadilhas de uma tautologia. Que pode ser ato médico, se não aquele realizado pelo médico no exercício de sua profissão? Se for assim, a celeuma que se estabelece sobre o assunto pode ser conceitual, teleológica ou até corporativa, mas não de entendimento, não de semântica. O que vem a ser o ato (do) médico não comporta discussão e dele poderíamos até dizer, parodiando conhecido brocardo dos tribunais do Norte: verba ipsis loquuntur.

Todos sabem que o ato médico é da competência de um profissional que passa por formação prolongada, aprofunda-se em conhecimentos, acumula experiência por acertos e erros, tem acreditação social, credenciamento legal (Código Penal, Lei nº 3.268/57) e regulamentação prevista nas diversas constituições que já comandaram o ordenamento jurídico do país.

A posição da medicina no contexto das profissões é muito especial. Bem antes de ter a ciência a seu lado, os médicos já eram presentes e valorizados em todas as culturas e civilizações de que se tem notícia, o que torna razoável admitir que o homem criou o médico pelas mesmas razões que criou as divindades: para protegê-lo e dar-lhe forças, aqui e no desconhecido. Isto não quer dizer que se deva dar à medicina foros de hierarquia ou de elitização no vasto campo das atividades humanas. O fazer de todos os homens é importante, e o valor de um ato profissional depende do momento e das circunstâncias que o tornam necessário. O que mais se deseja no momento de um assalto é a presença de um policial; durante um incêndio, o herói é o bombeiro; num afogamento, o salva-vidas. Fora dos extremos, precisamos também do mecânico, do chaveiro, do encanador, de todos aqueles que podem fazer o trabalho de que necessitamos. É a vetusta divisão social do trabalho, já presente em civilizações tão antigas como a cretense, milênios atrás.

Mas se todas as profissões são importantes, algumas delas, pelas responsabilidades que lhes são imanentes, requerem qualificação, avaliação de competência e permissão legal para o seu exercício (Constituição Federal, art. 5 º, inciso XIII) . Isto não lhes dá supremacia, antes se tornam sujeitas a controle e fiscalização, para que sejam protegidos os que delas se valem. Exemplos notórios incluem motoristas de ônibus, pilotos de aeronaves, médicos, engenheiros, advogados.

Os médicos são figuras importantes da área de saúde, mas compartilham esse campo com outros profissionais. E a despeito da relevância do trabalho médico em todas as ações voltadas para os cuidados da saúde, forças e fatores outros são importantes para a sua preservação (alimentação, ambiente, trabalho, etc.), e isto já fora percebido pelo Patriarca, milênios antes de Alma-Ata, Ottawa, Sydney, etc. Mas quando se trata de enfermidades, nenhum profissional ocupa o lugar que é devido ao médico, porque este tem preparo específico para cuidar de doenças e doentes, binômio de termos lógicos e conseqüentes.

O médico não ganha privilégios profissionais nos ritos de uma noite de festa em que se recebe diploma e se fazem juramentos e discursos. A qualificação do médico resulta tão-somente de vinte anos de investimento em estudo e esforços para ingressar no mercado de trabalho (o que não é nada, apenas metade da sua longa existência profissional). E isto acontece quando ele já se encontra quase nel mezzo del cammin di sua vita, considerando a expectativa de vida prevalecente na época em que nasceu. Esta preparação prolongada e intensiva é uma das razões que justificam a defesa do exercício profissional da medicina, ameaçado por interesses que procuram banalizar e confundir o conceito do ato médico e da arte de tratar doentes, para que isto fique ao alcance de quem não tem preparo nem autorização legal para fazê-lo.

Outra questão relevante decorre da razão anterior e diz respeito aos “parceiros” da medicina, aos que anunciam curas e resultados sem base experimental ou científica, como se a medicina de hoje pudesse ser exercida com o simples apoio de afirmativas carentes de comprovação, como acontecia no passado. E é assim que vemos surgir com audácia as terapias que se dizem alternativas e a corrente que se proclama medicina holística, ambas englobando processos falaciosos e prometendo resultados que não podem ser obtidos, valendo-se da boa-fé dos humildes e também dos desencantados com a medicina (“oficial”), porque esta não pode resolver tudo nem pode declarar que tem poderes para realizar milagres. (Claro que estamos falando da medicina praticada com seriedade e vigiada pelos órgãos incumbidos de zelar por seu perfeito desempenho) .

Todos percebem que a medicina passa por período de grande turbulência, mercê dos interesses financeiros que descobriram ser a doença campo rentável de investimentos. É pena reconhecer que muitos médicos colaboram, movidos por desejos de recompensa ou por falta de consciência crítica, para que a ganância dos investidores tenha sucesso. E o resultado disto é a medicina da pós-modernidade, fantástica, surrealista e criadora de miragens, mas cada vez mais distante dos necessitados.

Não vamos confundir ato médico com crise social da medicina. O ato médico, seja qual for a virtude ou atributo moral dos seus agentes (os médicos), há de ser responsável, autônomo, qualificado, socialmente aceito e legalmente referendado. O médico não cuida de coisas nem de fenômenos sociais, mas da qualidade de vida das pessoas, quando estiver em jogo prevenir ou afastar doenças. E apesar de destinado a ver o homem enfermo na sua totalidade, o compromisso primordial do médico incide sobre o componente biológico, ressalvadas as condutas voltadas para a harmonia da mente.

Diagnosticando, prescrevendo ou tratando, tríade que não exaure mas indica a destinação principal da conduta do médico, suas atividades freqüentemente acontecem em situações que envolvem risco para a vida humana e, por isso, o melhor que se pode desejar-lhe é segurança para a realização do seu mister. Porque o erro que com freqüência se atribui ao médico é menos dele que das estruturas e condições em que trabalha.

* Foi médico anestesista, professor da Faculdade de Medicina da UFBA, presidente da União Nacional dos Estudantes (UNE) e da seccional baiana da Sociedade Brasileira de Anestesiologia e e conselheiro do CFM.

* As opiniões, comentários e abordagens incluidas nos artigos publicados nesta seção são de inteira responsabilidade de seus autores e não expressam, necessariamente, o entendimento do Conselho Federal de Medicina (CFM).


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