Escrito por Mauro Brandão Carneiro*

Navega com direção certa e perigosa um iceberg desprendido da geleira que compõe o sistema de saúde brasileiro. Dele só vimos a ponta, revelada por manifestações isoladas na imprensa. Desde que o Senado Federal editou projeto de lei com o objetivo de regulamentar os atos médicos, muitas vozes se levantaram contra a sua aprovação, considerando-o uma ameaça às outras profissões da saúde, ao trabalho em equipe ou até mesmo uma espúria tentativa da classe médica de “garantir seu espaço no mercado”.

A Medicina é uma das profissões mais antigas do mundo, e os legisladores em nosso país nunca se deram conta da necessidade de regulamentá-la. Todos sabem o que um médico faz e quais são as atividades que só ele é capaz de fazer. Mas nos dias de hoje, diante da complexidade da assistência e da necessária divisão do trabalho entre os diversos profissionais de saúde (a equipe), a definição em Lei do alcance e dos limites dos atos médicos tornou-se uma necessidade social.

No calor dos debates que vêm acontecendo, ainda longe dos olhos e ouvidos da população brasileira, a principal interessada, surpreendemo-nos com determinadas ações postas em prática em vários pontos do país que revelam uma grave ameaça à qualidade da assistência: trata-se da tentativa deliberada de promover uma assistência à saúde sem médicos habilitados, mais barata por certo, mas com riscos à vida dos pacientes e aos profissionais que se arriscam a substituí-los.

As chamadas casas de parto são exemplos destas ações. Criadas para acompanhar os partos ditos normais e “humanizar” a parição, já foram devidamente analisadas pelo Conselheiro Pablo Chacel em artigo recentemente publicado. Mas não são as únicas. Um programa do Ministério da Saúde denominado Atenção Integrada às Doenças Prevalentes na Infância (AIDPI) treina profissionais não médicos para o diagnóstico e tratamento das doenças mais freqüentes entre as crianças. Ora, diagnóstico e tratamento de doenças são atribuições exclusivas do médico. Graças à atuação da Sociedade Brasileira de Pediatria e dos Conselhos de Medicina, que questionaram tais treinamentos inclusive com processos judiciais, o Ministério da Saúde está elaborando uma Portaria regulamentando o papel do médico e dos demais profissionais de saúde no Programa.

O Programa de Saúde da Família também precisa ser revisto quanto à composição de equipes sem médicos para atendimento à população. Em recente debate no estado do Ceará ficou comprovada a carência de 500 a 600 médicos no PSF, não obstante a elogiável iniciativa da Secretaria de Saúde de realizar concurso público. Ainda são muitas as secretarias e postos de saúde sem diretor médico pelo Brasil afora, inclusive no Rio de Janeiro. Uma instituição de saúde sem um responsável técnico médico funciona ao arrepio da lei.

Outra demonstração da necessidade urgente de se regulamentar o ato médico foi a aprovação recente de uma Lei pelo município de São Paulo que dispõe sobre a implantação da “medicina alternativa” e das “terapias naturais” nos serviços públicos de saúde. De acordo com o texto, serão oferecidos aos cidadãos práticas como massoterapia, fitoterapia, terapia floral, hidroterapia, cromoterapia, aromaterapia, geoterapia, quiropraxia, ginástica terapêutica, iridiologia e terapias de respiração.

Como bem observou o Presidente do CREMESP, “em vez de serem atendidos por médicos, de se submeterem a exames laboratoriais, de terem bem estabelecidos seus diagnósticos e receberem a prescrição de medicamentos, certos pacientes serão orientados a tratar seus males com terapias sem embasamento científico e com eficácia jamais comprovada, que misturam cores, aromas e o poder das águas. A falta de diagnóstico preciso, não resta dúvida, poderá retardar ou até inviabilizar os tratamentos e a recuperação”.

Conceber uma Medicina sem médicos habilitados não é um debate acadêmico. É a aplicação acrítica do receituário neoliberal do Banco Mundial, segundo o qual os gastos públicos devem ser orientados “para ajudar os mais pobres, aplicando-os em programas de baixo custo e alta eficácia”. Não é coincidência que os programas citados dirigem-se à população mais carente, quase sempre sem opção de escolha. Na receita do Banco não há referência à qualidade da assistência, podendo ser prestada por qualquer um desde que tenha resultados e seja barata.

Desvirtuar o conceito de equipe é essencial para aviar a receita. Ao invés de reunir os saberes e práticas de cada profissional em benefício da população, misturam-se estes ingredientes em receitas práticas capazes de serem aplicadas por qualquer um de seus membros. Em breve teríamos profissionais de saúde “multifunção”, que sabem um pouco de enfermagem, de nutrição, de medicina etc, o suficiente para implementar uma medicina de segunda para gente de segunda.

Outra vertente desta tendência é a contratação indiscriminada de médicos formados no exterior em vários municípios brasileiros. São também mais baratos, não têm seus diplomas revalidados pelas universidades pátrias, não dominam nosso idioma (caso dos estrangeiros) e atendem pacientes (pobres) sabe-se lá como. O argumento pífio de que médicos brasileiros não vão para locais distantes já foi derrubado várias vezes, e a mais recente foi quando o Secretário de Saúde do Rio de Janeiro ofereceu seu celular para que entrassem em contato direto com ele os médicos que desejassem trabalhar na zona oeste da cidade. Mais de 200 fizeram contato só no primeiro dia. A verdade é que nossos governantes não implementam políticas de interiorização adequadas, com seleção pública, estabilidade empregatícia e estímulo para que o profissional estude e se aperfeiçoe. Em geral, o médico que aceita uma proposta de trabalho no interior fica à mercê do Prefeito, sem qualquer garantia para a sua sobrevivência. Esta é a grande ameaça que paira sobre o Programa de Saúde da Família, uma brilhante iniciativa com o risco de fracassar por falta de uma política adequada de recursos humanos.

É preciso deter este iceberg, cuja parte submersa revela uma perspectiva cruel e sombria para a saúde pública brasileira. A regulamentação em Lei dos atos médicos constitui apenas um primeiro passo, mas que ajuda ao explicitar as ações que só este profissional pode executar, devidamente habilitado, fiscalizado e capaz de assumir os riscos pelas decisões que venha a tomar. Temos consciência de que nenhum profissional atua sozinho na assistência à saúde, mas temos também a certeza de que não se faz saúde sem médicos.

* É médico Infectologista, Conselheiro Federal pelo Rio de Janeiro e Coordenador da Campanha Nacional pela Regulamentação do Ato Médico.

* As opiniões, comentários e abordagens incluidas nos artigos publicados nesta seção são de inteira responsabilidade de seus autores e não expressam, necessariamente, o entendimento do Conselho Federal de Medicina (CFM).


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