Escrito por Carlos Vital Tavares Corrêa Lima*
O indivíduo carente, integrante da maior parte da população do País e dependente de assistência pública, em diversas ocasiões tem protestado contra o desrespeito à dignidade humana no atendimento oferecido pelo Sistema Único de Saúde (SUS). Esse protesto expressa o descontentamento da população e dos médicos com respeito às dificuldades dessa rede no dia-a-dia de pacientes e profissionais.
O principal obstáculo assistencial é a deficiência de infraestrutura nos serviços ambulatoriais e hospitalares, sobretudo nas unidades de urgência e emergência. Outro ponto crítico é o descaso com a formação, a valorização e a contratação de recursos humanos para a área da saúde. A este cenário desalentador se incorpora a falta de um sistema de referência e contrareferência, implantado em dimensões adequadas, com suficiente apoio logístico laboratorial e de transporte qualificado. Finalmente, vem a ausência de avaliação e controle como outra reconhecida dificuldade.
O SUS se constitui em nível de planejamento como um sistema, além de completo, complexo e coligado à vontade governamental. Requer do povo uma plena capacidade de consciência política para sua consolidação na prática. Evidentemente, existem avanços nas áreas de transplantes, de vacinações e de processos epidemiológicos na prevenção e no tratamento da Aids, que atinge ricos e pobres.
Não obstante, na ausência da capacidade de consciência política do povo, a qual tem origem nas lacunas da estrutura educacional, fica o SUS restrito a uma demagógica carta de intenções. A gênese desse problema está na Constituição Federal de 1988, um marco político de dignidade humana, com estrutura voltada ao parlamentarismo, mas que, equivocadamente, instituiu um regime presidencialista, surgindo, assim, um grande óbice à efetiva repartição dos poderes constitucionalmente estabelecidos.
No contexto presidencialista, determinado a partir da promulgação da Constituição de 1888, houve a extinção do Pacto Federativo, com absoluta perda de Estados e Municípios empobrecidos e endividados, submetidos aos interesses e vontades da União, que passou a se beneficiar do aumento da arrecadação tributária por conta de contribuições de melhorias que, por lei, não são divididas como são os impostos com os demais Entes Federativos.
Além disso, a União se desonerou de vários encargos. Por exemplo, em 1988, ela era responsável pelo custeio de 44% dos recursos humanos em saúde, mas, atualmente, sequer assume 6% desses dispêndios. Assim, cada vez mais se configuram impeditivos à plena eficácia do SUS, seja pela falta de financiamento, pelos silêncios oportunistas da gestão ou pela fragilidade e inoperância dos mecanismos de controle e avaliação.
Como decorrência natural destas distorções, percebe-se o êxodo de usuários do SUS para os planos de saúde. Trata-se de uma multidão que faz esse movimento com grande sacrifício a partir de brechas em seus estreitos limites orçamentários, motivados pela necessidade imperiosa de acesso aos serviços de saúde.
Portanto, num espaço de capital privado, sob responsabilidade da Agência Nacional de Saúde Suplementar, que não cuida da relação entre prestadores de serviços (médicos) e operadoras, 50 milhões de pessoas estão vulneráveis ao gáudio empresarial, com a prosperidade das ações mercantis em detrimento dos cuidados assistenciais oferecidos.
Os Conselhos Federal e Regionais de Medicina (CFM e CRMs), bem como outras entidades médicas (sindicais e associativas), têm envidado todos os esforços ao seu alcance para enfrentar o caos da assistência a saúde pública. Na área de competência específica do sistema conselhal, são elaboradas normas, realizadas fiscalizações e interdições hospitalares. Também há proposições de ações judiciais e intensa movimentação no âmbito administrativo federal e no Congresso Nacional em defesa de melhoras condições de trabalho e da valorização profissional do médico.
Assim, na luta por um ético desempenho da medicina se torna relevante salientar que o CFM tem ainda desenvolvido ações políticas para promoção do exercício de cidadania, para que a população desfavorecida tenha a força suficiente para as transformações políticas, sociais e econômicas imprescindíveis ao SUS coerente com os ditames constitucionais.
Porém, há de se ter em mente que essa é uma tarefa de toda sociedade civil e de todos os brasileiros que não mais toleram o crime organizado e a corrupção em uma democracia racionada, na qual se procura, com a propaganda e a publicidade, esconder a política do pão e circo para o povo de Roma.
* É 1º vice-presidente do Conselho Federal de Medicina (CFM).
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