Julião Guerra*

 

Um milagre não é mais bem definido como um fato extraordinário em termos de raridade de ocorrência, mas seu sentido verdadeiro deve ser avaliado devido às consequências que ele produz, ou, mais propriamente, considerando-se seus benefícios. Esse é o sentido que vamos considerar neste texto ao analisar alguns aspectos da prática profissional, principalmente àqueles relacionados ao exercício das profissões de saúde.

Consideremos um exemplo simples, como a cirurgia de catarata, realizada atualmente em milhares de pessoas, diariamente, em vários cantos do mundo. Sem esse tipo de cirurgia, as pessoas atingidas pela catarata estariam irremediavelmente condenadas à cegueira. Sob o ponto de vista do benefício recebido por essas pessoas, não há dúvidas de que elas foram favorecidas por um verdadeiro, autêntico e inquestionável milagre. O incessante desenvolvimento de novos medicamentos e a evolução tecnológica dos equipamentos para diagnóstico e terapêutica de doenças têm salvado milhões de vidas e curado inúmeras pessoas.

Por isso, o implante coclear, que possibilita a recuperação da audição; o alívio de dores intensas proporcionado pelos analgésicos; a cura de infecções graves, anteriormente fatais; e o controle do diabetes, da hipertensão arterial e de outras doenças podem ser considerados milagres que salvam ou proporcionam uma melhora expressiva na qualidade de vida de milhões de pessoas. O tratamento de doenças como lúpus eritematoso sistêmico, de micoses profundas, de várias formas de pênfigo, assim como o diagnóstico precoce do câncer ou a realização de cirurgias que salvam incontáveis vidas diariamente podem ser classificados como verdadeiros milagres. Os avanços dos transplantes, a erradicação da poliomielite e da varíola em escala mundial são exemplos inquestionáveis de milagres, fruto do trabalho anônimo de milhões de pessoas, bem como a fantástica redução da mortalidade infantil e a elevação da expectativa de vida da população mundial.

Em minha experiência pessoal de médico, sempre me intrigava a sensação especial que sentia (e sinto) ao diagnosticar e tratar pacientes com hanseníase. Só depois de certo tempo é que me dei conta de que essa sensação relacionava-se ao fato de sempre ter me impressionado com o relato bíblico, ouvido desde a minha infância, a respeito da cura dos leprosos feita por Jesus. Poder contribuir, nos dias de hoje, para a cura de pacientes com hanseníase reativava em minha mente (em um nível inconsciente) uma sensação poderosa: estar praticando um milagre, repetindo um ato semelhante àquele praticado pelo próprio Filho de Deus.

Um aspecto central a ser destacado é que os milagres aqui descritos são sempre construídos coletivamente. O conhecimento necessário para sua realização é fruto do trabalho de milhares de pessoas ao longo de muitas gerações: ninguém subirá ao pódio sozinho, e, se quisesse fazê-lo, estaria cometendo uma absurda e imperdoável usurpação ao não reconhecer o caráter coletivo dos milagres praticados.
Emociona-nos saber que em muitos outros lugares do mundo outros profissionais de saúde estão envolvidos em atividades semelhantes, utilizando o mesmo conjunto de conhecimentos para promover a cura ou, pelo menos, aliviar o sofrimento de muitas pessoas; e que, apesar de falarem várias línguas, eles usam uma linguagem científica que é comum a qualquer profissional de saúde que atua nos mais diferentes lugares do mundo, possibilitando a ocorrência dos milagres descritos. A ideia de uma gigantesca e solidária rede de profissionais que ultrapassa fronteiras e vence barreiras linguísticas e culturais e se une para salvar vidas e melhorar a saúde das pessoas é poderosa e incrivelmente estimulante.

Um dos grandes inimigos do milagre é o burocrata. Ele é uma pedra no caminho, e sempre que pode cria obstáculos que impedem a realização dos milagres cotidianos. Mas os maiores inimigos dos milagres são a banalização, a indiferença e a falta de gratidão. Não reconhecer, não valorizar e não agradecer são atitudes que desestimulam e inibem sua realização.

Eis o maior pecado do homem: a banalização dos milagres, que leva à indiferença e à falta de gratidão. Temos sido omissos e negligentes ao deixarmos de reconhecer e de celebrar os milagres que ocorrem em nossas vidas. Na prática, isso se manifesta na atitude do profissional de saúde que, mesmo realizando milagres em seu exercício profissional, trabalha insatisfeito, sem compreender o verdadeiro significado e dimensão daquilo que faz. De maneira semelhante, manifesta-se no comportamento dos pacientes que, beneficiados por verdadeiros milagres, não conseguem demonstrar gratidão ou reconhecer a importância daquilo que receberam. O poeta Drummond faz referência a “mil presentes da vida aos homens indiferentes”, fazendo-nos pensar nas pessoas que passam a vida inteira sem sequer se dar conta dos milagres dos quais participam, e sem agradecer pelos benefícios recebidos em decorrência deles.

Tudo considerado, podemos sempre perguntar a nós mesmos e aos outros: quantos milagres você já fez? Você reconhece e valoriza os milagres que faz? Você demonstra gratidão quando recebe os benefícios de um milagre? Você sente gratidão por ser instrumento para realização de milagres? Precisamos assumir uma atitude de reconhecimento, valorização e gratidão quanto aos milagres cotidianos, e, assim fazendo, estaremos construindo um poderoso instrumento de estímulo e de motivação para todos aqueles que se dedicam à sua prática, tornando-a mais gratificante e prazerosa.

 

* Possui título de especialista em dermatologia pela Sociedade Brasileira de Dermatologia (SBD) e foi diretor da VI Gerência Regional de Saúde (VI Geres) da Secretaria Estadual de Saúde de Pernambuco.

 
    

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