Escrito por Sandra Franco*
A desistência de profissionais cubanos do programa Mais Médicos provocou, mais uma vez, a reflexão que o descaso com a saúde no Brasil e’ institucional. O sistema de saúde do país passa, há algum tempo, por um colapso que parece não ter fim. E com o objetivo muito mais eleitoreiro do que funcional, o Governo Federal editou a Medida Provisória nº 621/13, posteriormente convertida na Lei nº 12.871/13, que instituiu o programa assistencial “Mais Médicos”.
O conceito do programa governamental seria o de que a população abandonada, nas periferias das grandes cidades e nos rincões do país, passaria a dispor de um serviço de saúde mais efetivo. Vende-se a falsa ideia de que a mera presença do médico e’ uma garantia à população de que seu direito constitucional à saúde está preservado. Porém, os casos recentes de revolta e abandono de médicos cubanos revelam que a “virtude social” do programa não condiz com a realidade.
Os problemas podem estar apenas começando já que por conta do convênio alguns profissionais cubanos em exercício no Brasil passaram a consultar a legislação trabalhista vigente no país. O “Mais Médicos”, à primeira vista, tem uma série de imperfeições que violam a legislação trabalhista brasileira, o princípio da dignidade da pessoa humana, os valores sociais do trabalho e os direitos fundamentais dos cidadãos, pois já em sua origem apresenta um traço discriminatório.
De acordo com recentes publicações da mídia nacional, os médicos inscritos no programa realizariam um aperfeiçoamento mediante cursos de especialização por instituição de educação superior e receberiam, assim, uma bolsa mensal. Profissionais que se candidataram ao programa “Mais Médicos” têm desistido, com justificativas diversas, entre elas a falta de infraestrutura, planos profissionais e pessoais e desconhecimento de algumas condições. Os médicos cubanos, ainda que pretendam deixar o programa (e alguns já o fizeram), assumem as mais distantes e abandonadas cidades, sem poder reclamar ou apontar os problemas que encontram pela frente. Afinal, estão em uma missão humanitária e, portanto, não devem se preocupar em mudar o que já existe; mas sim driblarem as más condições de trabalho em prol da população. Questiona-se, porém, se essa é uma missão humanitária de fato…
A revolta dos médicos cubanos é só mais um sopro na chama do pavio que já está aceso desde o anúncio do programa. A saúde brasileira não pode ser uma área para experimentos. A população está farta de medidas políticas e carente de medidas práticas e eficazes. A falta ou a desistência de médicos afeta diretamente o povo que já paga um preço alto por um sistema em caos. E denota uma fragilidade no planejamento do programa e na sua execução.
O Conselho Federal de Medicina (CFM) já vem se manifestando contrário ao Mais Médicos desde o seu nascimento e ingressou na Justiça com uma ação civil pública na qual se discute o registro dos médicos estrangeiros que aderirem ao programa sem comprovar documentalmente a revalidação dos diplomas emitidos por universidades do exterior e do exercício profissional. A ação não é contra a presença de médicos estrangeiros no país, mas sim de médicos estrangeiros que não obedeçam ao dispositivo legal existente, no sentido de comprovar sua capacidade técnica.
A saúde deve passar a ser uma prioridade real para o Governo Federal. Mas, há vastos exemplos pelo território nacional da falta de estrutura física e de recursos humanos na área da saúde, as quais, inclusive, impedem que médicos brasileiros busquem trabalho no interior do país e lá se fixem.
Pode-se citar o Maranhão, um dos Estados que apresenta a mais baixa proporção de médicos por mil habitantes no país, o município de Roseira que possui apenas um hospital, no qual a maioria das salas está desativada, a autoclave apresenta décadas de uso, possui um aparelho de raios-X quebrado há anos e na sala de urgência e emergência sequer há um desfibrilador. A mídia mostrou tratar-se de um desses locais que, após inaugurados, ficam abandonados, com portas de madeira corroídas, paredes descascadas e piso quebrado, o cenário é de abandono. Infelizmente, não é um caso isolado. Esse cenário se repete em mais uma centena de munícipios brasileiros.
O SUS apresenta, mesmo nos grandes centros, filas de espera para atendimento em especialistas, meses de espera para a realização de exames complementares e dificuldades incontáveis para ser marcada uma cirurgia eletiva.
Os investimentos em soluções imediatistas já se mostraram desperdício. Não é preciso ser especialista para perceber que não se tem saúde, sem médicos. Da mesma forma, especialistas, como aqueles que fazem parte do governo, não podem ignorar que “Mais Médicos” não representam a saúde no conceito expresso na Constituição da Organização Mundial da Saúde: saúde é um estado de completo bem-estar físico, mental e social, e não apenas a ausência de doenças.
Medidas planejadas de médio e longo prazo, e não apenas políticas, possibilitariam resultados efetivos. Não seria urgentíssimo evitar tantos doentes? Não deveríamos primeiro cuidar das causas antes das consequências? Sem demérito de muitas ações de políticas em saúde bem-sucedidas e bem-intencionadas, talvez um projeto simples como “Mais Água Tratada” ou “Mais Saneamento Básico” fosse o adequado no momento em que se apregoa o objetivo de revolucionar a saúde no Brasil. Precisamos de “Mais Saúde”.
* É consultora jurídica especializada em direito médico e da saúde, é presidente da Comissão de Direito da Saúde e Responsabilidade Médico-Hospitalar da OAB de São José dos Campos (SP), conselheira no Conselho Municipal de Saúde (COMUS) de São José dos Campos (SP), presidente da Academia Brasileira de Direito Médico e da Saúde -drasandra@sfranconsultoria.com.br
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