Escrito por Luiz de Mello e Souza*
Havia, num lugarejo perdido, distante de tudo e de todos, uns cegos que, nunca tendo visto um elefante, não conseguiam entender como era esse animal. Um dia passou por lá um elefante, e os cegos foram levados para conhecer o bicho. O mais baixo pegou a perna do elefante e foi dizendo: “O elefante é como uma palmeira, redondo, roliço, áspero.” Outro, muito alto, passou a mão pelo lado do animal e protestou: “O elefante é como um muro alto e rugoso, bastante longo.” O terceiro pegou a tromba e concluiu: “O elefante é uma serpente.” Voltaram discordando e sem se entenderem.
Essa historieta demonstra que não é possível saber como é o todo conhecendo apenas uma parte, e daí tirando conclusões.
E é exatamente isso que a maioria dos médicos, dos políticos e da população em geral fazem, quando discutem o problema da saúde no Brasil. Apegam-se a uma parte e insistem num ponto de vista parcial e distorcido. E neste artigo procuro dar uma visão global dos problemas, que são quase sempre apresentado s sem visão ou conhecimento do conjunto. A consequência é a legislação inadequada, o atendimento caro e precário, o desperdício de recursos escassos, médicos e pacientes insatisfeitos. Poucos políticos e alguns proprietários de empresas de medicina mercantilista tiram proveito e não querem que se conheça o conjunto de problemas e, menos ainda, que se proponham soluções que interfiram no “status quo”. Foi tentando analisar o problema de um modo global é que, publiquei já há algum tempo, nos jornais de radiologia (Boletim do Colégio Brasileiro de Radiologia e Jornal da Imagem) artigos procurando uma visão global dos problemas e possíveis soluções. Vejamos:
10 pontos problemáticos
1. Nos Estados Unidos, hoje, para dar atendimento gratuito à população, há um custo anual de mais de US$ 5.000 por pessoa. E já se prevê uns US$ 8.000 para dentro de uns dez anos. No Brasil, a maior parte da população não ganha isso para comer, vestir e morar. Portanto é impossível ao governo arrecadar para oferecer atendimento gratuito a toda à população. Na Europa, onde os vários países têm diferentes restrições, o custo anda entre 1.500 e 2.500 euros. No Brasil, os escassos dados existentes, indicam que seriam necessários no mínimo uns R$5.000 por ano, por pessoa, o que não muda muito o raciocínio.
2. Ao longo dos tempos, e, principalmente na segunda metade do século XX, o custo do atendimento médico tem aumentado sempre. Os médicos não ganham mais, porém usam equipamentos cada vez mais complexos e caros, tanto para diagnóstico como para tratamento. Tudo indica que nos próximos anos esse custo vai se acentuar ainda mais.
3. A Constituição (artigos 6o, 195o a l98o) e a lei 8080, de 1990, do SUS, enfatizam que o sistema é hierarquizado, organizado, sem privilegiar ou discriminar ninguém, mantido por toda a sociedade, sem fazer dívidas ou despesas que não tenham sido previstas e providas de numerário. Nada se diz sobre os custos da medicina, sobre pobres ou indigentes. Nada obriga a gratuidade ou cobrança. E não há uma autoridade (pessoa física e/ou entidade) única coordenando e se responsabilizando, administrativamente, pelas decisões, e pelas atuações federais, estaduais e municipais. Isto causa dificuldades administrativas.
4. Há no Brasil quem não dispõe de uns poucos reais para pagar uma condução até um atendimento gratuito (e necessário, sob o ponto de vista médico) e quem pode tomar um jato particular ou a primeira classe de um avião de carreira para ser atendido pagando todo o custo, nas melhores instalações do Hemisfério Norte. Entre os dois extremos, há toda uma gama de condições financeiras, predominando os que têm pouquíssimo.
5. Como as pessoas normais não podem arcar com custos maiores sem grandes sacrifícios pessoais, ou nada têm, há necessidade de algum tipo de seguro, que permita que todos paguem ao longo dos tempos, para usufruir quando e se necessário.
6. O Código de Ética Médica (revisão de 2009 – cap I. item IX) diz que a medicina não pode ser exercida como comércio. E, (item X) que ninguém deve se interpor entre o médico e o paciente para obter lucro, vantagem política ou religiosa. O cap. VIII é todo sobre a remuneração de pacientes particulares. O Código nada diz sobre custos.
7. Gratuidade gera desperdício. É da natureza humana não economizar no que não é pago diretamente. Isto vale para atendimento médico ou para qualquer outro bem ou serviço.
8. Na maioria dos serviços públicos e em muitos planos de saúde, médicos pressionados por demanda excessiva e pouco tempo, dão consultas rápidas, apressadas, e para se resguardarem pedem muitos exames, sem lógica ou desnecessários. Exame que não define uma conduta é exame inútil.
9. Não se pode negar atendimento a quem não tem condições financeiras, não importa o motivo da penúria. É uma questão de respeito humano.
10. Além do atendimento do médico, profissionais da saúde como enfermeiros, nutricionistas, fisioterapeutas, biomédicos e outros podem ser necessários, e apoio psicológico de parentes e amigos é sempre imprescindível.
Duas soluções
Diante de tais problemas, aspectos diferentes, contraditórios, e com as dificuldades de convencimento de autoridades; legisladores, proprietários de empresas de medicina mercantilista e outros; haverá quem desista, quem pretenda remendar apenas alguns dos itens mais problemáticos ignorando os outros; ou espere que tudo piore muito, para que , quando chegar ao insuportável , a médio ou a longo prazo; (e quando a responsabilidade for de outros), defina-se uma solução.
Creio que o momento de agir é agora, sem espera para que tudo se acomode, porque não acontecerá. E cabe aos médicos, e não aos políticos e empresários, indicar as soluções. Vejo duas providências:
a) Implantação dos direitos do paciente, definidos pela Associação Médica Mundial, publicados no Brasil pela AMB (Revista da Associação Médica Brasileira, 27:277, 1981) e que permanecem meio secretos . Não vejo entre as entidades médicas, entre os médicos e profissionais da saúde, e menos ainda entre os políticos, qualquer interesse em tornar conhecidos esses direitos. Pelo menos os médicos devem conhecê-los e divulgá-los entre os pacientes:
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O doente tem direito à livre escolha de médico e hospital. (Se a escolha não puder ser paga por quem financia: governo, seguradora, plano de saúde ou quem for, este paga o que puder, o doente arca com a diferença).
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O doente tem direito a ser assistido por um médico que possa decidir livremente quanto aos métodos de diagnóstico ou tratamento necessários.
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Explicada a natureza e as consequências dos atos médicos e do tratamento o doente pode aceitá-los ou recusá-los.
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O doente tem direito à confidencialidade.
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O doente tem direito a pedir, aceitar ou recusar assistência espiritual ou religiosa.
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O doente tem direito a morrer com dignidade.
Qualquer empresa que se proponha a financiar o atendimento médico deve deixar claro no contrato se esses itens são ou não respeitados. Isso deveria ser parte dos direitos do consumidor. Deveria ser imposição legal ou normativa. Chamo a atenção para o fato de os direitos dos doentes não implicarem em aumento de custos, nem onerarem as instituições que pagam: continuam pagando de acordo com suas possibilidades. O doente pode optar por quem cobra menos ou mais, e suportando a eventual diferença entre o que o plano de saúde pode pagar e o que, como doente, quer receber em termos de atendimento. E, participando do pagamento, o doente acompanha e fiscaliza os custos; o que reduz abusos. E isto devolverá ao médico sua condição de autônomo. Poucos se sentem bem num emprego ou convênio que limita sua capacidade de atendimento e de decisão.
O respeito a esses seis pontos devolveria ao médico sua dignidade, sua liberdade de decisão, e, principalmente, a relação médico-paciente.
É necessário por na cabeça dos políticos e dos pacientes que, no Brasil, atualmente, a gratuidade universal é impossível. Matematicamente impossível. E o atual sistema é perverso principalmente com os mais pobres, mais tímidos, menos desembaraçados. Imprescindível mudar alguns itens da legislação.
b) Para os indigentes ou muito pobres devem se criar equipes de médicos e agentes comunitários, como já proposto pelo Dr. Jatene (Projeto Qualis). Um clínico geral ou médico de família ajudado por pessoal de enfermagem e agentes comunitários (pessoas simples, mas que tenham recebido treinamento adequado em normas de higiene, alimentação e cuidados pessoais) visitam as comunidades mais pobres, diagnosticando e orientando. Mas essas equipes, que já funcionam em alguns lugares, necessitam do respaldo de especialistas; de exames de laboratório; métodos gráficos; de imagem; ou por fibra óptica flexível; o que hoje é quase impossível, e sempre muito demorado.
Deve ser cobrado um pagamento mínimo, simbólico se for preciso, para qualquer atendimento. Quem se declarar indigente, nada podendo contribuir pelo atendimento, não poderá abrir crediário e só poderá operar com bancos de modo limitado. Isto valoriza o médico, os profissionais de saúde, e o ato médico.
Conclusão
A solução dos problemas me parece estar na informação global, hoje sonegada a médicos, profissionais da saúde e à população em geral, e no respeito aos direitos dos doentes, que não podem continuar semi-sigilosos. As entidades médicas deveriam distribuir a todos os médicos impressos de esclarecimento, e preparar folhetos de esclarecimento para pacientes e população em geral. E, antes de terminar, duas frases: Do dramaturgo Nelson Rodrigues: “Toda unanimidade é burra”. E do comentarista de TV e jornalista Walter Cronkite: “Quando todos pensam igual é porque ninguém está pensando”.
* É médico radiologista.
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