Escrito por Ernane Nelson Antunes Gusmão*

Já não se morre como antigamente – no recesso morno do lar, o quarto semi-escurecido, a família reunida, os amigos solidariamente presentes, talvez uma vela acesa na cabeceira da cama, as senhoras mais experientes cuidando em dar conforto ao moribundo, o médico chamado em casa aos derradeiros cuidados, o padre chegando para a extrema unção, alguém pedindo silêncio à criançada. Hoje em dia, lugar de morrer é, infelizmente, o Hospital, preferencialmente até a Unidade de Tratamento Intensivo.

Tenho assistido, acompanhado e dolorosamente ajudado ao espetáculo circense de tantas mortes aparatosas, cercadas de esforços tão inauditos quanto inúteis, pseudo-ressuscitações, hemofiltrações contínuas, ventilações assistidas, tubos na traquéia, choques elétricos, gasimetrias em série, que freqüentemente chego a duvidar se possa morrer em paz.

A propósito, e para não parecer Satanás pregando Quaresma, aviso de antemão aos meus colegas e amigos de peito, não quero, quando chegar a minha vez, morrer fora da minha casa e da minha própria cama, salvo se em situação grave e aguda potencialmente reversível no ambiente hospitalar.

Muito freqüentemente as famílias querem internar seus membros doentes, geralmente os mais velhos, transferindo-os aos cuidados hospitalares, evitando os transtornos domiciliares e fugindo ao confronto direto com a morte. Nada de errado nessa conduta, responsável e pragmática. Ocorre porém que amiúde há casos, desenhados nos prolongados internamentos, cumulados de complicações irreversíveis, em que se configura inequívoca obstinação terapêutica, e a vida é ingloriamente prolongada às custas de um estado vegetativo, sem qualquer relação ambiental, consumindo divisas oficiais e por vezes tragando, em míseras e sofridas semanas, toda a poupança e o patrimônio arregimentados em uma vida inteira de saúde e trabalho.

Não pode o médico defender a Eutanásia, causar ele mesmo o evento final. Não lhe compete porém obstinar-se com um fiapo de vida, quando todas as forças de um organismo moribundo se aliam à morte, quando há consenso quanto à inexorabilidade do fim. Compete-lhe então propiciar conforto, ausência de dor, sedação, cuidados básicos aos ferimentos, hidratação adequada, alimento, para que a morte se inevitável, tenha um curso natural e menos sofrido, a Ortotanásia.

O que se assiste não raro, todavia, é a Distanásia, “modus morrendi” em que o paciente teima em morrer e o aparato tecnológico insiste em mantê-lo sub-vivo. A entubação traqueal, a hemodiálise, a ressuscitação cardio-respiratória e as megadoses de aminas simpático-miméticas e cardio-estimulantes, são os principais atores dessa tragicomédia encenada todos os dias nos hospitais e unidades de intensivismo sobre uma parcela não desprezível dos seus clientes clinicamente inviáveis. O caminho que leva à Distanásia, a obstinação terapêutica, é, no mais das vezes, o internamento compulsório de indivíduos que, pelo seu passado mórbido conhecido, e recente, já são identificados como candidatos ao internamento domiciliar, ao Home Care, tratamento conservador e paliativo, onde a morte viria a ocorrer, em prazo maior e menor, sob um ritual doméstico mais afetivo e menos oneroso.

Houve-se muito bem o Conselho Federal de Medicina ao aprovar recente resolução que visa permitir a suspensão de procedimentos e tratamentos de pacientes irremediáveis. Já que a morte é inevitável, pelo menos se possa morrer com dignidade. Trata-se, em verdade, de uma mudança de forma física, já que a vida é verdadeiramente eterna; finitas são apenas as formas. A vida é infinita, ela se recicla nas diversas condensações da energia universal.

* É médico clínico e nefrologista, membro titular da Academia de Medicina da Bahia e coordenador geral do programa Nefro-Bahia – Sesab/Fabamed.

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