Escrito por Cláudio Duque

Há alguns anos fui chamado para atender, em casa, um clínico geral já passado dos 80 que estava com uma doença grave e crônica. Vinha apresentando episódios de turvação da consciência, especialmente “sundowning”, com alucinações cinestésicas e delírios. Tratava-se de um dos mais ilustres médicos do estado, com quem me consultei uma vez quando ainda estudante e cuja família tem amizade com a minha. Na ocasião da minha consulta fiquei impressionado com o exame meticuloso que me fez e com a firmeza com que disse que eu não tinha nada além de uma virose dessas corriqueiras. Fui vê-lo no tempo de que dispunha, sábado de manhã, numa casa no subúrbio. Ao chegar, como sempre faço, tentei sentir o ambiente e fiquei muito impressionado sem saber direito por que. Era uma casa grande, moderna, confortável, sem o menor sinal de luxo e onde as coisas se harmonizavam como se tivessem todas nascido lá; como um jardim ao mesmo tempo bem cuidado e sem jardineiro que o podasse. As coisas simplesmente estavam lá. Havia silêncio. E havia um painel com um poema que eu lia discretamente sempre que entrava e saía. Todas as vezes me emocionava. Era o retrato daquela casa. Simplicidade, emoção silenciosa e força inesgotável. Filhos e netos sempre circulavam ou estavam em suas ocupações. Mesmo com 30 anos de profissão, desde o início me senti como principiante, recém-formado diante dos quase 60 anos da convivência daquele ambiente com a medicina. Quando entrei, a atitude de todos foi de alegria silenciosa e um respeito tão grande que me senti minha carteira do CRM crescer no bolso. O que ouvi da fala de todos, mesmo silenciosos, foi: “Que bom, chegou o médico!”. Percebi então que não era eu quem chegava, era a medicina que entrava pelo jardim e era assim que a medicina era recebida e habitava aquela casa. Poucas vezes na vida me senti tão orgulhoso de ser médico, porque estava recebendo por tabela o respeito à profissão que o então enfermo havia ensinado a eles. Pensei: essa é a casa de um médico, é assim que os médicos devem viver, é numa casa assim que devem morrer. Foi quando encontrei o paciente na sala. Nunca havia visto um doente grave com tanta dignidade e serenidade. Usava o pijama como um almirante se orgulha da farda. Percebi seu respeito por todos os pijamas que havia encontrado na vida. Olhou-me serenamente, sem me reconhecer, com a voz fraca, sussurrante, perguntou se eu estava bem e começou a relatar, com todos os detalhes, o seu sofrimento. Falou com a sinceridade e a confiança que merecera a vida toda. Ouvi, perguntei, respondeu, acrescentou. Disse-lhe o que achava e como pretendia ajudá-lo. Ouviu com curiosidade e otimismo. Aceitou sem nada comentar. Sorriu, olhando-me nos olhos. Éramos aliados contra a dor e a morte. Visitei-o todos os sábados pela manhã durante mais de um ano. Depois, amiudava ou espaçava as visitas conforme o seu estado exigisse. Não lhe fiz uma só visita da qual não saísse emocionado, não raro com os olhos molhados. Era o contato direto com a sacralidade de uma coisa que tinha um link direto com Hipócrates e que eu via pelo mundo afora se desvanecendo como um riacho minguado na terra seca e estéril do dia-a-dia. Sua esposa, simples, bonita e sorridente, me tratava com se fosse da família e eu era, era do time do marido, era da confraria universal dos lutadores contra a morte, irmãos para sempre. Ela sempre assistia às consultas, deixava-nos a sós um pouco e depois confidenciava sobre o estado e o comportamento dele. Uma vez, reconheci que um dos medicamentos não estava funcionando e resolvi mudar. Ela me disse que ele ia achar bom, pois não simpatizava com a droga desde o início, mas que proibira qualquer pessoa da família de sequer mencionar o fato; eu era o médico e o médico deve ter toda a liberdade de escolha do tratamento. Outra vez, ao relatar suas alucinações, comentou pensativo: “agora entendo o que alguns pacientes me diziam; quando eu ouvir alguém me contar uma coisa dessas, vou encarar de uma forma diferente, só vivendo é que a gente sabe mesmo como é”. Esse “quando alguém me contar” na hora me pareceu tudo menos uma negação do fato óbvio de que não voltaria a clinicar e não ouviria mais queixa alguma. Ouvi como um recado, uma lição, bem assim: “você pensa que algum dia vai parar de aprender a ouvir os seus pacientes?”. Coincidiu um dia de quando eu chegar ele estar sendo examinado pelo neurologista. Contemporâneo dele, já teriam atendido juntos dois mil e trinta pacientes. O velho neurologista não tinha boas notícias. Olhavam-se nos olhos com cumplicidade. Sabiam do que estavam falando. A situação era a mesma de tantas vezes, ser com um deles não faria diferença. Era “a luta”, a medicina funcionando como devia funcionar. Em março do ano passado saiu uma portaria da ANVISA desaconselhando o uso em idosos de um medicamento com que ele estava se dando muito bem. Comuniquei-lhe imediatamente a razão da mudança do remédio. Não lamentou, disse apenas que ainda bem que nada de mal tinha acontecido. Assisti a trocas de roupa, sessões de fisioterapia, mudança de posição na cama, manobras para preparação de banho, transporte no braços de enfermeiro da sala para o quarto e vice-versa e jamais o ouvir se lamentar de qualquer incômodo nem deixar de agradecer a mim e aos outros por qualquer melhora. Numa das primeiras consultas, percebi que a esposa, muito discreta e encabuladamente, tentava introduzir na conversa o assunto dos meus honorários. Respondi com a mesma moeda; falando de outros assuntos dei a entender que não cobrava de colegas. Nunca mais se falou no assunto. Os médicos do tempo dele se tratavam assim. Estava em sistema de home hospital. Todos os resultados de laboratório e as evoluções lhe eram apresentados. Lia e comentava com naturalidade. estava em casa. No final de cada consulta me apresentavam o prontuário, importante ali como se fosse a bíblia de Gutemberg. Mesmo depois de centenas de blocos rabiscados, na primeira prescrição minha mão vacilou como na primeira emergência do primeiro plantão. Fiz a letra mais bonita que consegui, reli e conferi trezentas e quatorze vezes e ainda não fiquei tranqüilo. A medicina devia ser sempre assim. Este ano ele finalmente venceu a morte. Foi-se em paz, com naturalidade, sem desespero. A Dama da Foice, brutal e tenebrosa, não teve vez naquela casa. A partida foi digna e em harmonia. A medicina dele venceu mais uma vez. Desculpem ter-me alongado tanto, mas na última terça-feira, 18 de outubro, acordei me lembrando do velho médico.


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