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Escrito por Mário Tadeu Penedo Borges*

 

A partir do final do século XIX, Freud, através de permanente e cuidadoso exame clínico em seus pacientes, conseguiu demonstrar a enorme relação que havia entre os transtornos emocionais e/ou afetivos e o aparecimento dos mais variados sintomas nesses inúmeros pacientes. Nos cem anos subsequentes, a medicina, através de estudos científicos e principalmente através da atividade clínica diária de grandes médicos do século XX, solidificou e ratificou definitivamente as constatações clínicas iniciais de Freud.

Nas últimas cinco décadas, dissipou-se qualquer sombra de dúvida que ainda poderia haver a respeito da conhecida manifestação clínica somatização. Um enorme percentual desses sintomas leva a quadros clínicos que são chamados de síndromes ou doenças funcionais. As doenças funcionais são os mais frequentes motivos (70% em média) das consultas médicas, considerando-se as diversas especialidades médicas existentes.

Até a década de 1960, período dos grandes clínicos humanistas, esses pacientes com doenças funcionais eram corretamente examinados, diagnosticados e tratados. Praticamente sem ajuda alguma de exames complementares, pois esses eram escassos antes de 1960, e a principal atitude terapêutica nas doenças funcionais é a indispensável correta relação médico-paciente, que proporciona ao paciente total confiança no seu médico (amparo emocional), e, portanto, diminui-lhe, significativamente, a insegurança e a ansiedade. Essa é a única possibilidade de cura real dos pacientes funcionais. Os comprimidos são meros coadjuvantes.

A partir da década de 1970, quando a maravilhosa tecnologia moderna invadiu também a medicina, o tempo da consulta médica diminuiu excessivamente, pois o diagnóstico passou a ser colocado muito mais nas “mãos dos exames complementares do que na indispensável relação médico-paciente”. Os exames complementares, principalmente através das maravilhosas máquinas diagnósticas, jamais diagnosticarão as doenças funcionais. Somente a anamnese completa e o exame físico bem feito fazem esse diagnóstico. Sem estas essenciais atitudes, a grande maioria dos nossos pacientes não terá diagnóstico e tratamento corretos e serão despropositadamente chamados de “muito nervosos” e “pacientes poliqueixosos” (no complaint, no doctor. Isn’t true?).

Se a medicina, isto é, os médicos, não tivessem abandonado a atitude médica típica dos grandes clínicos da primeira metade do século XX, e agora, auxiliados apenas quando necessário pela ultramoderna tecnologia diagnóstica, estaríamos exercendo a “medicina perfeita”. Permaneceríamos examinando o paciente dentro do seu complexo contexto biopsicossocial, continuaríamos a diagnosticar e tratar corretamente as “doenças” de origem emocional, além de termos todo arsenal diagnóstico moderno para diagnosticar e tratar as chamadas doenças orgânicas.

Infelizmente, para os pacientes, assim não aconteceu. A medicina atual esqueceu-se quase completamente da grande maioria dos seus pacientes (aqueles com doenças funcionais) e passou a dirigir sua atenção, quase que exclusivamente aos pacientes com doenças orgânicas (30% da totalidade dos pacientes). “Tratamos a doença” e muito pouco o doente. Este é o grande comportamento iatrogênico da “medicina moderna”.
Gostaria de expressar aqui a nossa visão sobre uma antiga afirmação, conhecida por todos, de que a principal “missão” dos médicos é salvar vidas. Com certeza, esse secular pensamento não é sábio (correto). Estamos absolutamente convictos de que a principal missão dos médicos é MELHORAR A QUALIDADE DE VIDA DOS PACIENTES. Milhões de pacientes com inúmeras doenças crônicas necessitam frequentemente de um ou mais médicos acompanhando-os, para terem uma vida de boa qualidade. Esse distorcido pensamento generalizado (salvar vidas é muito importante, entretanto é muito menos frequente do que acompanhar um paciente durante vários anos) só serve para cegar os médicos quanto à absoluta necessidade da boa relação médico-paciente para o tratamento correto de todos pacientes. Sem exceção.

Observação final: Decidi escrever este texto quando, em março de 2014, vi um belo cartaz de divulgação do PRIMEIRO Congresso Brasileiro de Doenças Funcionais em gastrenterologia. Imediatamente ocorreram-me dois sentimentos opostos: uma pequena alegria por finalmente aparecer uma microluz no fim do túnel, e uma enorme tristeza por constatar definitivamente como a verdadeira medicina (biopsicossocial) parou no tempo, no mínimo há 30 anos. Em 2014, a sociedade médica brasileira deveria estar realizando o TRIGÉSIMO Congresso de Doenças Funcionais.
Esta insuficiente atenção médica (é óbvio que existem muitas e maravilhosas exceções) dispensada aos pacientes com sintomas de origem emocional (doenças funcionais e etc…) é uma clara evidência de que a medicina humanizada está quase sepultada, com a sua cova cavada pela tecnologia médica. Esta é a pior notícia possível para milhões de pacientes, independente do(s) motivo(s) pelo(s) qual (is) eles procuram auxílio médico.

Em 2013, iniciamos junto com o Centro de Ciências da Saúde – UFES, o projeto MEDICINA HUMANIZADA. Este projeto pretende, em médio prazo, tirar da UTI, o atual estado da relação médico-paciente, que está agonizando; e se possível, posteriormente, darmos alta hospitalar a este atual grave quadro clínico do exercício da medicina. Temos certeza de que todos os pacientes do estado do Espírito Santo agradecerão muito.

* É prof. adjunto do Departamento  de Clínica Médica do Centro de Ciências da Saúde – UFES  e  escritor.

 
    

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