Parece, a primeira vista, óbvia, pela própria natureza da profissão médica, a indissolubilidade da ética e da medicina. Porém, analisando-se os fatos que ocorrem no dia-a-dia da profissão, torna-se claro que a ética não é atributo automático das ações dos profissionais da medicina. Para que a ética (do grego: ethikos = costume, moral) possa realmente ser atributo das ações dos profissionais de saúde é necessário primariamente cristalizá-la.
A medicina não é uma profissão como qualquer outra, tampouco é uma área de atuação do ser humano como qualquer outra, já que como todos sabemos, o seu objeto é a vida humana e a sua interação com o organismo físico, o ambiente e a sociedade. Isto impõe, pela própria constituição do ser humano e da civilização, independentemente de qualquer influência religiosa, a ética não como característica mutável, adaptável à conveniência –seja própria, de terceiros ou mesmo do paciente-, e sim como fundamento da medicina.
Os indubitavelmente brilhantes avanços no que concerne a alta-tecnologia aplicada à medicina, os conseqüentes interesses de diversos setores financeiros pela medicina e o deslumbramento provocado pela sofisticação dos modernos recursos diagnósticos complementares e terapêuticos reduziram drasticamente a consciência da importância de habilidades outras, igualmente imprescindíveis à medicina de qualidade, tais como a relação médico-paciente, a anamnese e o exame físico. Juntamente com o enfraquecimento no final do século XX da influência de valores morais pré-estabelecidos na sociedade, na ciência e na medicina, as importantes conquistas tecnológicas e científicas – pelo seu brilho – levaram à minimização da importância da ética na medicina, de glamour menos aparente.
A ética é cada vez mais vista como atributo passivo do médico, como obrigação, inerente ao médico ou não, e não como qualidade imprescindível à prática médica, complexa, a ser desenvolvida e discutida. Como já diz a terceira lei de Newton: “actio=reactio” – a cada ação corresponde uma reação.
Na medicina, a minimização da ética propiciou terreno fértil para o crescimento desenfreado de terapias alternativas, algumas dotadas de méritos inegáveis, mas incapazes de oferecer ao paciente todo o espectro diagnóstico e terapêutico completos, necessários à assistência médica de qualidade, freqüentemente ludibriando os pacientes, fazendo os crer na “toxicidade dos medicamentos” tradicionais e na desumanidade da medicina científica. Além disto, prestou-se a elevar exponencialmente a quantidade de processos contra médicos e a criar uma desconfiança difundidada nos mais diversos setores em relação à classe médica.
O enfraquecimento do exercício da ética na medicina, também permitiu o surgimento de escolas de medicina de qualidade dubitável e de profissionais que visam primariamente o lucro financeiro, possibilitando a crescente influência de entitades com interesses exclusivamente financeiros na área médica, colocando em segundo plano a qualidade dos serviços médicos fornecidos e minimizando desta forma os efeitos benéficos das conquistas em nossa àrea das últimas décadas. A medicina, com a sua indissociabilidade da ética e da vida humanas, é um belo exemplo para a inaplicabilidade universal de conceitos de modelos neoliberais de gestão que visam apenas o lucro financeiro a curto prazo, desconsiderando o ser humano.
Mesmo sendo conceito tão implícito à profissão médica ou exatamente por sê-lo, não pode ser tão pouco tematizado, a sua discussão no dia-a-dia do ensino médico e no exercício profissional se tornar um tabu tão grande, que o futuro profissional da medicina, entre o ensino médico, as trincheiras dos planos de saúde e o descaso na saúde pública passe a duvidar até mesmo de sua real existência e praticar uma medicina pobre em ética e portanto com resultados inconsistentes. Cada vez mais demonstra-se a multifatorialidade da etiologia das doenças. É por isto que a medicina requer, além do conhecimento das bases anatomo-patológicas, também o dos cofatores genéticos, sociais, ambientais, psicológicos, comportamentais e mesmo políticos que determinam a Sáude e a doença humanas.
Para tanto, é necessário o aprimoramento e o estímulo ao raciocínio lógico, e a capacidade de análise crítica. Assim como a experiência mostra que a quantidade de processos contra médicos, justificados ou não, são extremamente reduzidos onde há boa relação médico-paciente, estudos mostraram também a redução da ocorrência de erros médicos e o aumento do percentual de diagnósticos quando da aplicação correta e rotineira de recursos aparentemente simples, mas custo-efetivos, como a anamnese e o exame físico, além de exames simples, não invasivos, tais como a mensuração dos sinais vitais. A complexidade da vida humana determina a complexidadade da ética médica e é por isto que esta requer desenvolvimento e exercício ativo constantes.
Assim como cada paciente, cada caso, é único, a ética a ser aplicada a cada paciente é de complexidade única e talvez seja aí que se cruza a linha tênue entre mera ciência e arte, e é talvez por isto que o profissional médico nunca poderá ser substituído por um “médico-robô”. A ética com suas inúmeras facetas não pode ser vista como anexo passivo da medicina, a ser usada apenas quando as circunstâncias permitem, quando conveniente ou na ocasião de discursos e deve sim ser característica mais importante da prática médica, a ser incorporada ativamente no dia-a dia da profissão. Não pode ser assunto tão impronunciável e mal-interpretado que práticas manifestamente anti-éticas sejam toleradas sem que haja qualquer manifestação contrária.
Para que o médico em formação possa exercer a ética na futura prática profissional é necessário que o ensino médico incentive uma transição. A formação médica não pode ser vista como mera continuação do modelo de ensino médio e pré-vestibular, onde se estimula o armazenamento de um máximo de fatos mais ou menos relacionados na memória de curto prazo para serem descarregados em provas escritas, as quais tendem a avaliar mais esta capacidade do que qualquer outra coisa. Outrossim, deve-se estimular o raciocínio lógico e multidisciplinar, a reflexão sobre a inserção e a função social da medicina e o desenvolvimento da capacidade de análise crítica e fortalecimento e desenvolvimento fundamental de valores e posturas a serem adotadas no exercício da medicina, incluindo-se a valorização das técnicas básicas em medicina, em qualquer nível de atenção à saúde, tais como a relação médico-paciente, a anamnese e o exame físico. Além disto, o futuro médico deve se transformar do mero imitador do ambiente que o cerca a determinado momento a um indíviduo capaz de tomar decisões baseando-se tanto nos fatores envolvendo o paciente em questão, o seu próprio conhecimento científico, quanto no seu saber ético e nas convicções adquiridas através da análise das atitudes dos seus preceptores e da literatura.
Para tanto, há que se difundir ativamente a consciência de que para o exercício de uma medicina de qualidade é indispensável a capacidade da análise crítica, condição sine qua non à habilidade de destilação do que é realmente benéfico ao paciente e à saúde pública entre as variaveis de comportamento médico que encontramos no dia-a-dia. Somente assim estará armado para produzir uma medicina qualitativamente elevada em meio ao caos de saúde pública e privada que vivemos. E somente assim será possível progredir de uma medicina paliativa, onde médicos tratam apenas os sintomas mais proeminentes e, quando muito, uma doença agudamente manifesta, para uma medicina onde o médico realize intervenções que realmente exerçam impacto sobre a saúde individual e coletiva.
Enfim, a ética não pode ser passiva no campo da medicina, mas depende de intervenções ativas pelos médicos a nível dos cuidados médicos individuais despensados ao paciente, a nível das relações entre colegas e outros profissionais de saúde, das instituições de Saúde e a nível da sociedade em geral, pois somente assim permite a aplicação dos recursos científicos e tecnológicos hoje disponíveis, de modo a efetivamente aumentar a qualidade dos serviços médicos prestados.
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