Escrito por Régis Eric Maia Barros*

 

Quanta dor! Visitar unidades públicas de saúde é, na maioria das vezes, uma das vivências mais dolorosas na atualidade brasileira. Nós, médicos, que vivemos e compartilhamos isto quase que diariamente somos testemunhas mais do que oculares desta situação. Costumo dizer que somos testemunhas afetivas desta lamentável realidade. As cenas de guerra em algumas emergências e hospitais públicos brasileiros estão incorporadas no nosso cotidiano. Nós que olhamos nos olhos daqueles estão amontoados em macas ou deitados no chão por falta de espaço, nós que escutamos o lamurio e a dor daqueles que estão desassistidos, nós que sentimos a tristeza daqueles que esperam respeito do Estado Brasileiro, nós que nos sentimos impotentes frente à impossibilidade de ofertar conforto e saúde. Enfim, nós, médicos, é que sofremos e podemos, além dos pacientes, testemunhar tudo isto.

 Em meio a este caos da saúde pública, fomos surpreendidos pelo programa federal chamado “Mais Médicos” cujo arcabouço padece de muitas falhas merecendo destaque a falta de validação do diploma médico estrangeiro e o modelo de pagamento para alguns profissionais. No entanto, o mais grave, a meu ver, é a mensagem subliminar embutida no programa e repassada para população. Enfim, nós, médicos brasileiros, fomos colocados como os grandes culpados pela falta de acesso à saúde. Nós, médicos brasileiros, fomos acusados pela falta de assistência. Nós, médicos brasileiros, fomos apontados como o grande vilão pela falta de interiorização do médico no Brasil.

Diante disto, lembrei-me, vividamente, da época quando eu terminei a faculdade de medicina e necessitei trabalhar antes mesmo de fazer a residência médica. A justificativa era simples: meu pai era “praça” da Polícia Militar do Ceará e minha mãe dona de casa. Enfim, a renda familiar não conseguia fazer frente às crescentes despesas. Não me restou escolha, tive que trabalhar num PSF (Programa de Saúde da Família) no sertão do Ceará. Lá, percebi um “pão e circo” mais emblemático do que os grandes eventos romanos. O que se via era um verdadeiro “faz de conta que trata e faz de conta que fica bom”. Saúde é diferente de colocar um médico num local bem longínquo onde não há estrutura para o trabalho e condições de atuar no processo saúde-doença de forma preventiva ou curativa. Em outras palavras, médico + dipirona + diclofenaco + plasil + remédio de verme + diazepam não significa mais saúde. Isto era o meu trabalho à época do PSF. Eu e estas poucas medicações, sem nenhuma estrutura adequada para, de fato, ofertar e gerar saúde. Cansei e, mesmo admirando e concordando com a base teórica do PSF, decidi tentar a residência e complementar a renda com plantões.  

O Programa “Mais Médicos” vai ao mesmo sentido daquilo que descrevi acima. Por mais que seja importante, a simples presença do médico não é o ponto de inflexão e de mudança para ofertar uma saúde digna a qualquer comunidade do mundo, inclusive no Brasil. A saúde precisa de reais investimentos e de muito interesse político. Neste contexto, percebemos um total desconhecimento sobre o real sentido de saúde, visto que, para alcançarmos saúde precisamos ir além de ter alguém vestido de jaleco. Saúde é ter um pensar preventivo, portanto alicerçado na atenção primária fortalecida, matriciada e articulada. Saúde é ofertar uma rede escalonada e capaz de organizar o fluxo dos pacientes desde o atendimento em um posto de saúde até uma internação especializada. Saúde é ofertar estrutura para que os objetivos de cada atividade de saúde sejam alcançados. Saúde é investir financeiramente de forma respeitosa nesta área e não surrupiar o dinheiro público para este fim. Saúde é proteger os agentes e servidores da própria saúde, ou seja, saúde é respeitar e cuidar dos profissionais que buscam executar esta tarefa. Pararei por aqui, pois, só com estas reflexões, já é possível compreender que não temos, no Brasil, uma saúde pública de qualidade.

Talvez, por ser um produto com resultado de médio a longo prazo, não há um real interesse em investir numa saúde, realmente, diferenciada. O princípio do programa “Mais Médicos” de levar “saúde” às comunidades mais distantes já pode ser, facilmente, rebatido pelo pouco que descrevi e olhe que, pela necessidade de fazer um texto curto, eu nem aprofundei questões como gostaria de fazer. Enfim, o programa “Mais Médico” não conseguirá, conforme exposto, levar saúde plena e de qualidade para a população.

Por fim, trago a última reflexão: por que o médico brasileiro não quer atender e se manter nas comunidades mais distantes e longínquas do Brasil? A resposta é simples. Por que ele tem juízo e coerência, visto que, nestas comunidades é muito mais regra do que exceção encontrarmos: ausência de recursos terapêuticos para a prática de trabalho, a ausência de estrutura adequada para trabalhar, a falta de respeito e compromisso por parte de muitos gestores nos pagamentos e a falta de condições dignas para exercer a profissão. Enfim, não é somente o médico brasileiro que não irá se interiorizar frente a esta triste realidade, mas qualquer pessoa de bom senso e com princípios éticos coerentes.

Enfim, nesta onda de “Mais Médicos” quem continua sucumbindo frente à situação de penúria da saúde pública brasileira é a população pobre que é a maior parcela da população brasileira. O referido programa não mudou e não mudará, absolutamente, nada da situação de saúde pública no Brasil e, se continuarmos com propostas como esta, eu acredito, inclusive, que poderemos ter é “menos saúde”.

 

 

* É médico psiquiatra, mestre e doutor em Saúde Mental pela FMRP – USP

psiquiatria@stabilispsiquiatria.com.br

 
    

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