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Escrito por * Neri Tadeu Câmara Souza*

As discussões sobre a validade ou não da eutanásia, dentro da realidade brasileira, por vezes trazem um enfoque abstraindo – sem levar em conta – o enquadramento desta em nosso ordenamento jurídico. Isto permite que se faça, neste texto, partindo de conceitos na área da eutanásia, uma projeção e reflexão dos dispositivos legais que se vinculam a estes conceitos.

A eutanásia (este termo já existe desde o século XVII) em sua visão clássica, consiste em se provocar a morte de uma pessoa antes do previsto, pela evolução natural da moléstia, um ato misericordioso devido a um padecimento não suportável, decorrente de uma doença sem cura. Esta maneira de causar a morte de outrem pode se dar de uma maneira ativa ou passiva, pode se dar de um jeito direto ou indireto, ou como um ato voluntário ou não voluntário do paciente. Não é privativo do médico o crime de eutanásia – não é um crime próprio(Nota 1) – visto poder ser realizado por qualquer pessoa – é, pois, um crime comum. É um crime, já que é fato ilícito, típico e culpável, que encontra sua tipificação na Parte Especial, do nosso Código Penal em seu artigo 121, no parágrafo 1º, que diz: “Art. 121. Matar alguém: §1º Se o agente comete o crime impelido por motivo de relevante valor social ou moral, ou sob o domínio de violenta emoção, logo em seguida a injusta provocação da vítima, o juiz pode reduzir a pena de um sexto a um terço.”. Encara o Código Penal como, in verbis: “Caso de diminuição de pena”, ou seja , define-o como um crime que a doutrina chama de homicídio privilegiado, mas, ressalte-se, um típico homicídio doloso(Nota 2). Também tem esse enquadramento legal na Parte Geral (Circunstâncias Atenuantes) do mesmo Código Penal no artigo 65, inciso III, alínea “a”, que reza: “Art. 65. São circunstâncias que sempre atenuam a pena: (…) III – Ter o agente: a) cometido o crime por motivo de relevante valor social ou moral;”. Cabe aqui citar a Constituição Federal brasileira de 1988, que protege a vida em seu artigo 5º, no caput, que nos determina: “Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida,(…)”, não permitindo a introdução, em nosso ordenamento jurídico, de qualquer dispositivo legal regulamentando a extinção da vida. A vida é um bem jurídico indisponível, resguardado por nosso direito positivo. E, frise-se, a eutanásia sempre foi encarada pelo direito pátrio como um ato ilícito criminal. Inclusive considerada uma ilicitude ética, pelo atual Código de Ética Médica que em seu artigo 66, reza: “Utilizar, em qualquer caso, meios destinados a abreviar a vida do paciente, ainda que a pedido deste ou de seu responsável legal.”. Portanto, com razão, a jurisprudência e a doutrina do Direito definem o crime de eutanásia como um homicídio, via de regra, privilegiado (no caso, cometido por motivo de relevante valor moral – o compadecimento pelo penar de outrem) devidamente tipificado, no Código Penal brasileiro, no artigo 121 e seu parágrafo 1º. Seja o crime de eutanásia praticado de uma maneira ativa (por exemplo, o médico administra um fármaco que cause a morte do enfermo – eutanásia direta, positiva) ou passiva (uma manobra terapêutica – até o uso de um medicamento – deixa de ser executada, ou o próprio uso, frise-se, adequado, de um medicamento que abrevie o tempo de vida – eutanásia indireta, negativa), já que no ordenamento jurídico brasileiro o ato criminoso pode ser praticado por comissão (ação) ou omissão (inação) e, até mesmo, comissão por omissão, não fazendo diferença para caracterizar, e enquadrar legalmente, o delito penal de eutanásia como se caracterizou o agir do agente criminoso. Se tinha a sua conduta – causadora da morte do paciente – características comissivas ou omissivas, pouco importa na tipificação do crime de eutanásia. Se você “deixa alguém morrer” ou se você o “mata”, isto é encarado da mesma maneira, do ponto de vista jurídico, em nosso ordenamento – tanto no aspecto constitucional, como no penal: não é permitido, é crime. Qualquer tentativa de descaracterizar o crime de homicídio privilegiado, em caso de estarmos frente a um crime de eutanásia, não é correta quando eivada a conduta do agente do crime de características omissivas, haja vista este entendimento doutrinário em nosso direito de tratar com igualdade do ponto de vista penal qualquer dos dois tipos de conduta – a comissão (agir) ou a omissão (não agir). Assim, nem um possível entendimento de que a eutanásia passiva poderia ser encarada como um crime de omissão de socorro (Art. 135 do Código Penal: “Deixar de prestar assistência, quando possível fazê-lo sem risco pessoal, à criança abandonada ou extraviada, ou à pessoa inválida ou ferida, ao desamparo ou em grave e iminente perigo; ou não pedir, nesses casos, o socorro da autoridade pública.”) ou de abandono de incapaz (Art. 133 do Código Penal: “Abandonar pessoa que está sob seu cuidado, guarda, vigilância ou autoridade, e, por qualquer motivo, incapaz de defender-se dos riscos resultantes do abandono: (…) § 2º Se resulta a morte:”) que possuem penas menores para o autor do delito, encontra apoio doutrinário no direito brasileiro, até por caracterizar-se, a eutanásia, na maior parte das vezes como um crime comissivo por omissão ou, também chamado, omissivo impróprio(Nota 3). É o caso da ortonanásia ou paraeutanásia – a eutanásia passiva – executada quando um paciente em situação terminal, isto é por insucesso de qualquer tratamento, que se possa utilizar, se apresente sem possibilidade de cura. Mas, não é o caso quando num paciente com morte encefálica(Nota 4) portanto num quadro de coma irreversível, são deixadas de ser executadas manobras terapêuticas – de qualquer espécie – que mantenham suas funções vitais em funcionamento – este paciente já está morto, dentro dos critérios, atuais, aceitos pela comunidade médica científica e pelos órgãos normativos do exercício profissional no que tange à ética médica. Estamos falando, ao se abordar a ortotanásia (paraeutanásia, eutanásia passiva, indireta, negativa) em um paciente que pode ainda ter um quadro reversível, visto não preencher os critérios, aceitos atualmente, para ser considerado com morte encefálica. É primordial ter conhecimento, com certeza, se o paciente já morreu ou não. Muitas vezes, na prática, poderá haver uma certa dificuldade, face a um determinado óbito, para estabelecermos se estamos nos deparando, ou não, com um caso de eutanásia. Mas, não há eutanásia em quem já faleceu. Não temos que aceitar ou ser contra a eutanásia, basta apenas saber se o paciente está vivo ou não. Eutanásia é crime no Brasil. O médico que cometer esse crime, pode ser condenado a uma pena de reclusão de 12 a 30 anos, reduzida de 1/6 a 1/3 – é o que prevê o nosso Código Penal para o homicídio privilegiado – é isso que a eutanásia, geralmente, é, no Brasil, seja ela ativa ou passiva, voluntária ou não voluntária, direta ou indireta, positiva ou negativa. Se o paciente já morreu – não se está meio vivo, nem meio morto – apresenta morte encefálica, não há que se falar em eutanásia e sim em mudança de estado – de vivo para morto. E, se houve óbito, cabe uma comunicação em cartório de acordo com a Lei nº 6.015 – Dispõe sobre os Registros Públicos e dá outras providências – de 31 de dezembro de 1973, em seu artigo 29, inciso III(Nota 5), e no artigo 9º do Código Civil brasileiro, de 2002, em seu inciso I(Nota 6). Tudo isto obedecendo comando do artigo 6º do mesmo Código Civil que ordena: “A existência da pessoa natural termina com a morte;”. Assim, a manutenção vital, de uma determinada pessoa, deve ser mantida até que esta – morte – seja estabelecida cronologicamente, dentro dos critérios científicos e legais vigentes em um dado momento. O evento morte é um fato jurídico(Nota 7). Se está vivo, e isto é uma verdade absoluta, tem que ser tratado adequadamente. A discussão passa a ser – e compete a cada equipe médica, em cada caso clínico que se apresentar, decidir sobre isto junto com o paciente ou seus representantes legais, se for o caso – o que é mais adequado para aquele caso, respeitando os princípios éticos da autonomia, beneficência e justiça, ponderando sobre medidas ordinárias e extraordinárias a se utilizar, em cada caso, sobre o que seja proporcional ou desproporcional quanto à utilização concreta num determinado paciente, dentro do estado atual dos conhecimentos médicos (estado da arte) em cada local e oportunidade em que for realizado o atendimento, face ao quadro clínico daquele paciente. Tem que ser levada em consideração a decisão por parte de um paciente, consciente e bem orientado, de não submeter-se à determinada terapêutica. Também não importa para caracterizar-se o crime de eutanásia, se ele foi cometido pelo agente estando presente uma manifestação voluntária do paciente no sentido de que seja eliminada a sua vida, ou que não tenha este paciente se manifestado, voluntariamente, no sentido de que desejava terminar com sua vida, mesmo que haja consentimento dos familiares deste paciente.

Ninguém, de acordo com o ordenamento jurídico brasileiro, pode dispor deste nosso patrimônio inestimável – a vida. Ela é indisponível, porque interessa à sociedade proteger este bem – a vida. Nós podemos usá-la e fruí-la, como bem entendermos. Mas, ninguém pode dispor dela, nem com nossa autorização ou de quem quer que seja.

Nota 1 – Jesus, Damásio de. DIREITO PENAL, 19.ed, Saraiva: São Paulo, 1995, p.166: “Crime próprio é o que só pode ser cometido por uma determinada categoria de pessoas, pois pressupõe no agente uma particular condição ou qualidade pessoal,(…)”.

Nota 2 – Código Penal brasileiro: “Art.18. Diz-se o crime: I – doloso, quando o agente quis o resultado ou assumiu o risco de produzi-lo;”

Nota 3 – Jesus, Damásio de. DIREITO PENAL, 19.ed, Saraiva: São Paulo, 1995, p.170: “Crimes omissivos impróprios (ou comissivos por omissão) são aqueles em que o sujeito, mediante uma omissão, permite a produção de um resultado posterior, que os condiciona. Nesses crimes, em regra, a simples omissão não constitui crime. É o exemplo da mãe que deixa de alimentar o filho, causando-lhe a morte.”

Nota 4 – Na morte cerebral está suprimida a vida de relação e na morte encefálica, além desta, a vida vegetativa também está suprimida.

Nota 5 – Lei nº 6.015, de 31 de dezembro de 1973 – “Dispõe sobre os Registros Públicos e dá outras providênmcias”: “Art. 29. Serão registrados no Registro Civil de Pessoas Naturais: (…) III – os óbitos;

Nota 6 – Código Civil brasileiro, de 2002: “Art. 9º Serão registrados em registro público: I- os nascimentos, casamentos e óbitos;”.

Nota 7 – Mello, Marcos Bernardes de. TEORIA DO FATO JURÍDICO (Plano da Existência), 7. Ed, Saraiva: São Paulo, 1995, p. 88; “É verdade indiscutível que a finalidade precípua do fato jurídico reside na produção de efeitos jurídicos, porque seria até sem sentido, mesmo ilógico, que se imaginassem fatos jurídicos sem qualquer utilidade para a realidade da vida humana no plano de suas realizações interpessoais e que constituíssem meras entidades formais, puramente abstratas.

Mas, a constatação dessa verdade não pode eliminar a outra de que há fato que, embora concebido para gerar efeitos jurídicos, em certas circunstâncias podem não gerá-los, sem que se descaracterizem, todavia.”(sic) .

* É médico e advogado (Direito Médico)

* As opiniões, comentários e abordagens incluidas nos artigos publicados nesta seção são de inteira responsabilidade de seus autores e não expressam, necessariamente, o entendimento do Conselho Federal de Medicina (CFM).


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