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Conselho Federal de Medicina

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Escrito por Julio Cézar Meirelles Gomes*

O exercício da Medicina é erudito por natureza, inteiro por vocação e, por excelência, uno e indivisível. À luz deste conceito, convém discernir o que vem a ser a atividade denominada especialidade médica – que sempre acresce obrigações além dos deveres inerentes a seu próprio desempenho ético.O Conselho Federal de Medicina (CFM), em conjunto com outras entidades médicas, tem-se debruçado sobre o tema e buscado com denodo, sobre o crivo profissional, definir o conceito de especialidade, bem como os critérios para seu acervo cultural básico e as técnicas e habilidades indispensáveis à formação de seu patrimônio mínimo. Busca ainda, por vocação regimentar e afinidade cultural, organizar o tema com vistas à redefinição das especialidades, admissão de especialidades emergentes ou, até mesmo, criação de áreas de atuação, uma espécie de subespecialidades.

  Ademais, visa excluir especialidades vencidas ou agregadas. Como entidade gestora e normativa, o Conselho sabe muito bem que especialidade médica não é uma parte da Medicina destacada do conjunto – pelo contrário, é o conjunto exaltado na parte.

As bases éticas

Os princípios da autonomia, justiça, beneficência/não-maleficência e sigilo são os pilares da prática médica em geral e alcançam o ato médico em sua plenitude. Quando o médico se dedica com mais afinco a um ramo, ou seja, uma especialidade, sobrevêm encargos éticos adicionais e tão especiais quanto o segmento abraçado, além de virtudes e vocações específicas. Sabidamente, isto ocorre porque a especialidade representa um acúmulo de habilidades, conhecimentos e técnicas refinadas, contidos numa determinada área de atuação médica, dotadas ou não de forte apelo comercial, grandes atrativos ou riscos acentuados, além de uma complexidade intrínseca que pode onerar o custo intelectual do ofício, sem demérito para o exercício da Medicina em geral, quer clínica ou cirúrgica.

Conceitos e títulos

A definição clássica de especialidade, lato sensu, é “qualidade ou caráter de especial; particularidade. Coisa superior, fora do comum, muito fina ou rara. Trabalho, profissão (ou ramo dentro de uma profissão) de cada um. Habilidade ou interesse particular de cada um” (Novo Aurélio Século XXI – O Dicionário da Língua Portuguesa, de Aurélio Buarque de Holanda Ferreira, 1999). Por sua vez, o Dicionário Médico Ilustrado Blakinston, de 1970, conceitua especialista como aquele “que limita a sua prática a certas doenças ou a doenças de um órgão ou classe, ou ainda a certo tipo de terapêutica” e, por conseguinte, à especialidade ou “ramo da Medicina ou da cirurgia, adotado ou escolhido por um especialista”. Aqui, a redundância salta aos olhos, mas antes de ofender apura a vista.

Outra conceituação diz que a especialidade médica vem a ser, também, um “núcleo de organização do trabalho médico que aprofunda verticalmente a abordagem teórica e prática de segmentos da dimensão biopsicossocial do indivíduo e da coletividade”.

A busca da especialização configura uma pulsão ética em direção à concentração de conhecimentos ou aprimoramento de habilidades, o que torna o médico refém de seu próprio desafio intelectual, uma virtude dianoética. Em contrapartida, a obsessão pelo detalhe, a voragem cognitiva pela parte, pode gerar distorções de conduta, sobretudo na perda da visão do conjunto das relações, tão essencial à configuração do todo.

A propósito, convém lembrar o chiste de Bernard Shaw, oportuno no sentido de alertar sobre os riscos do especialismo desregrado, do detalhe exaltado em desfavor do todo: “O especialista é aquele que sabe cada vez mais sobre cada vez menos e, por fim, acaba sabendo tudo sobre nada”. Ortega y Gasset, assustado com o especialismo crescente na cultura ocidental, em meados do século XX já alertava para o que chamou de barbárie do especialismo considerando o especialista como o homem de ciência atual, um sábio-ignorante, protótipo do homem-massa.

Um estudo do ato médico e seus constituintes

O ato médico aprimorado, no sentido da especialização, carece de estudo mais rigoroso. O ato médico convencional acaba de receber do CFM, pela Resolução nº 1.627/2001, uma identidade conceitual satisfatória, até primorosa, em busca do perfil legal da atividade médica. Nosso entendimento pessoal, ademais, considera ato médico como o consórcio de técnicas e habilidades, terapêutico ou diagnóstico, individual ou coletivo, que alcança o limite das práticas invasivas de alto risco. Este conceito, antes de restringir a atividade e reservar mercado, visa proteger a excelência do ato, preservar a qualidade e ajudar a parceria da Medicina com outras práticas voltadas à promoção da saúde. Não tem escopo corporativo. Nunca!

A qualidade moral do ato médico não comporta discriminação numérica ou medidas de grandeza aritmética. Não há, no âmbito da Medicina, ato mais nobre do que outro, todos têm o mesmo quilate moral, o mesmo valor, podendo variar apenas na complexidade e implicações técnicas convencionais. Vale dizer, o ato médico do especialista tem o mesmo valor moral do ato do não-especialista, ocorrendo, tão-somente, variações de complexidade e variáveis de conveniência ou oportunidade que podem alterar o poder de resolubilidade do ato. Nem mesmo assim é possível hierarquizar o ato médico, construir uma escala de grandeza moral ou elaborar uma tabela de valores morais. Ou, o que é pior, um ranking de atos na Medicina!

O simples cuidado do paciente insalvável mediante alívio da dor e desconforto moral pode exceder em grandeza uma cirurgia cardiovascular, mais complexa, dramática e com impacto salvífico. É também preciso contextualizar o ato para aferir sua grandeza moral, princípio básico da epistemologia bioética. Na prática, o uso de equipamentos de refinada tecnologia não confere ao ato médico maior valor ou grandeza do que quando praticado com “duas mãos e o sentimento do mundo”; se muito, acresce um valor de custo adicional. Mera reposição de custo além da lex artis.

De tal sorte, as especialidades podem gerar uma expectativa especial no paciente: a convicção ingênua de que o especialista tem maior obrigação de acertar ou, quiçá, errar menos! Não é bem assim. Pelo contrário, junto ao especialista as exigências do paciente e sofisticações inerentes à técnica são tão acentuadas que podem ensejar mais erro do que no ato do generalista. Há menos tolerância com o erro do médico especialista e mais, o resultado insatisfatório do ato médico específico é quase sempre confundido com erro médico. Isto cria uma situação também muito especial. Como exemplo, a especialidade de alergo-imunopatologia, tão envolvida com outras especialidades que às vezes não há um plano de crivagem para distingüi-la das demais – como ocorre no caso da asma brônquica, onde o imunopatologista atua em conjunto, íntimo consórcio, com a pneumologia clínica.

As interfaces desta especialidade, com outras técnicas e subespecialidades, além de procedimentos complementares, podem criar uma zona de tensão para interesses profissionais superpostos e conflitantes. Assim posto, convém ressaltar o interesse das entidades de gerenciamento normativo, como o CFM, em preservar áreas de conhecimento médico sem descuidar ou melindrar profissões assemelhadas e suplementares, indispensáveis ao trabalho em equipe numa área onde o conhecimento humano exibe vastidão inquietante. O empenho é de alto risco e grande complexidade, por isso tem sido tratado com muito carinho, numa parceria especial com a Associação Médica Brasileira.

A divisão das competências

É preciso construir alianças e parcerias no âmbito das profissões de saúde, visando à qualidade no ato de saúde em função do interesse do paciente, fim e princípio da atenção médica. Ainda tomando o exemplo da alergo-imunopatologia, convém chamar atenção para o estímulo ético da própria especialização, contido no art. 2° do Código de Ética Médica (CEM), que recomenda ao médico agir com o máximo de zelo e o melhor de sua capacidade profissional em favor do paciente. Ora, o “máximo zelo”, no presente caso, deve ser entendido como o aprimoramento científico e técnico numa área específica da Medicina. Também não se deve esquecer o art. 17 da Lei nº 3.268/57, que faculta ao médico o exercício “da Medicina em todos os ramos e especialidades” – a rigor um estímulo à atuação abrangente, sendo que a dieta moral veda o desempenho em áreas técnicas ou habilidades que trazem risco para o paciente. É preciso discernir com bom-senso entre a licitude, a competência técnica e a adequação ética do ato que será praticado. Por isso as regras para o exercício da Medicina não são rígidas ou irracionais; deixam ao médico um espaço crítico de autodiscernimento e autogestão. Uma homenagem ao atributo do bom-senso.Todo médico deve ser, por natureza, dotado deste equipamento especial.

A prática da especialidade

O art. 5° do CEM recomenda ao médico aprimorar seus conhecimentos e utilizar o melhor do progresso científico, ou seja, atualizar-se na prática e no saber – que deve ser cotejado com o art. 57, que veda ao médico deixar de utilizar todos os meios disponíveis em favor do paciente. Por analogia, diz que não basta fazer o bem, é preciso não fazer o mal. Outros artigos podem igualmente servir para a reflexão sobre o exercício de uma especialidade. Por exemplo, o art. 9° alerta que a Medicina não pode, em nenhuma circunstância, ser exercida como comércio; artigo importante para os médicos que vêem a especialidade como máquina caça-níquel ou vitrine de vaidades. Em primeiro plano, cabe apenas o interesse de cuidar do paciente; como segunda intenção, a remuneração condigna. O art. 30 alerta para a não-utilização de auxiliares leigos nos procedimentos de diagnóstico, ilicitude que freqüentemente ocorre em áreas de forte concentração técnica, quando o médico se sente impelido a desmembrar seu ato em busca de mais fluidez ou produtividade. O art. 45, por sua vez, deve ser lembrado conjugado à Resolução CFM nº 1.036/80, na medida em que esta veda ao médico publicar especialidade da qual não tenha registro nos Conselhos de Medicina, o que não o impede de exercer o ramo ou especialidade pretendida, como vimos anteriormente, e apenas isso. O art. 60 recomenda ao médico não exagerar nos procedimentos diagnósticos ou terapêuticos a título comercial, o que pode resultar em especialidades eivadas de forte e irresistível apelo comercial, impregnadas pelo fascínio da tecnologia digital – as ditas especialidades da “moda”. E haja tentação! Tal como a alergo-imunopatologia, certas especialidades têm forte penetração em diversas áreas do conhecimento clínico e recebem como referência pacientes encaminhados de outras áreas, pelo que cabe alertar o médico para o art. 82 do CEM, que recomenda devolver o paciente ao médico de origem. É importante atentar para o disposto no art. 98, que veda ao especialista atuar inteirado com laboratório, visando comerciar medicamentos ou testes. Da mesma forma, o art. 99 alerta para a impropriedade do exercício simultâneo com a Farmácia ou obtenção de vantagens comerciais na prescrição de medicamentos, órteses ou próteses. O art.135 veda anunciar títulos que não possam ser comprovados ou especialidade para a qual não esteja qualificado.

Por aí se vê os riscos a que o médico especialista está exposto, as tentações embutidas na clínica, não bastasse o desafio técnico assustador, além da exigência do paciente-consumidor – quase sempre insaciável por resultados imediatos e apenas positivos. A ética médica não pode ser vista como ornamento intelectual do médico. É mais que isto: é um selo de qualidade que demonstra equilíbrio entre o conhecimento técnico e o compromisso global com a saúde. Pode não gerar grandes proveitos econômicos mas, certamente, o exercício ético da Medicina traz ao especialista a conveniência de evitar despesas com reclamações, incompreensões ou infortúnios. Portanto, vale, sempre vale a pena ser ético, além de belo resulta útil sê-lo, mais ainda no exercício de uma especialidade.

Tudo em ética vale a pena, já que a Medicina está longe de ser pequena – se é que podemos nos dar ao luxo de reinventar Fernando Pessoa.

* É médico pneumologista, e editor adjunto da revista Bioética.


* As opiniões, comentários e abordagens incluidas nos artigos publicados nesta seção são de inteira responsabilidade de seus autores e não expressam, necessariamente, o entendimento do Conselho Federal de Medicina (CFM).


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