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Escrito por Jaison Antônio Barreto*

Desconhecimento dos médicos sobre a hanseníase (assunto / porcentagem)

SC %

RS %

SP %

MT %

MS %

É endêmica no Brasil, com mais de 1 caso para 10 mil habitantes

68

54

20

42

31

A prevalência diminuiu muito com a introdução da poliquimioterapia (PQT) – OMS

38

33

26

47

51

Pode aparecer abruptamente, com ou sem dor no local das lesões

38

74

42

31

29

Há formas transmissíveis ou não, mas o início da PQT interrompe a transmissibilidade

30

26

54

31

28

Não é transmitida pelos objetos do paciente

27

17

38

22

16

O diagnóstico deve ser essencialmente baseado na história clínica e exame físico

65

65

68

36

21

O esfregaço para baciloscopia deve ser coletado da derme após incisão da epiderme

51

65

78

55

38

Não se transmite durante a coleta de material, por via aérea

51

57

56

61

63

Recidivas são tardias e reações são precoces

78

70

66

56

33

Prednisona não resolve a dor neuropática

51

46

48

32

22

A dapsona é a droga mais tóxica do esquema

57

63

52

28

30

Neurite deve ser tratada com prednisona e não talidomida

84

93

84

65

67

* As opiniões, comentários e abordagens incluidas nos artigos publicados nesta seção são de inteira responsabilidade de seus autores e não expressam, necessariamente, o entendimento do Conselho Federal de Medicina (CFM).


 * Os textos para esta seção devem ser enviados para o e-mail imprensa@portalmedico.org.br, acompanhados de uma foto em pose formal, breve currículo do autor com seus dados de contato. Os artigos devem conter de 3000 a 5000 caracteres com espaço e título com, no máximo, 60.

 

O Brasil é o país que apresenta o maior coeficiente de detecção de hanseníase das Américas. De acordo com a OMS, conforme publicado na Folha de São Paulo em novembro de 2008, hoje nosso país é tido como o único país que não eliminou a doença no mundo, após o Nepal ter proclamado a eliminação da doença em 2009. A estratégia de implantação de serviços de poliquimioterapia (PQT-OMS) para tratamento da hanseníase, implantada no Brasil na década de 1990, descentralizou o atendimento, e representou inegável avanço na abordagem da doença. Infelizmente, a capacitação dos profissionais de saúde para diagnosticar a doença não avançou na mesma proporção. Este foi um dos principais responsáveis por não se atingir a meta de eliminação da doença, como problema de saúde pública. A taxa de detecção praticamente não se alterou até 2005, quando essa meta foi abandonada. Curiosamente, a partir desse ano, a taxa de detecção começou a cair, de forma não esperada, chegando a quase 30% de queda, em relação à média dos últimos 10 anos, embora a taxa de detecção de casos avançados e de casos em crianças não tenha se alterado.

Qual seria, então, o motivo pelo qual a detecção vem caindo nos últimos 5 anos, de forma geral no país, mas isto não se verifica nos lugares onde há profissionais capacitados e treinamento contínuo, como em algumas cidades do interior de Mato Grosso e Mato Grosso do Sul? E por que, se a detecção melhorou por causa da redução da endemia, o grau de incapacidade no momento do diagnóstico não caiu juntamente com a taxa de detecção?

Para tentar entender este paradoxo, foi realizada uma avaliação do conhecimento dos médicos de unidades básicas de saúde de cinco estados brasileiros sobre a hanseníase. Em 3 deles, a doença é considerada sob controle (SC, RS e SP), mas nestes lugares o diagnóstico é tardio, sendo realizado, na maioria das vezes, em centros de referência. Em outros dois estados (MT e MS), há treinamento contínuo, financiado pela ONG alemã DAHW, com o apoio das Coordenações Estaduais e Municipais de Controle da Hanseníase, e em parceria com o centro de referência nacional em hanseníase, Instituto Lauro de Souza Lima, de Bauru, SP.

A metodologia que vem sendo utilizada, desde 2007, consiste em se fazer treinamentos em serviço, tomando-se o cuidado de avaliar as dificuldades mais comuns dos profissionais de saúde, previamente, para otimização do tempo e recursos. Assim, foi aplicado um questionário, de forma anônima, para todos os médicos e outros profissionais de saúde, versando sobre diversos aspectos da hanseníase, como epidemiologia, clínica, diagnóstico e tratamento, e cujos principais resultados estão descritos no Quadro 1.             Responderam ao questionário 299 médicos de unidades básicas de cinco estados da Federação: 50 de SP, 37 de SC, 46 do RS, 80 do MT e 86 do MS, entre outubro de 2009 e outubro de 2011. Para cada questão, havia 3 possibilidades de resposta a serem assinaladas: correta, incorreta e não sei; as respostas erradas foram agrupadas com as respostas “não sei”, para efeitos de avaliação do desconhecimento sobre a doença.

Quadro 1. Porcentagem de desconhecimento dos médicos de unidades básicas de saúde sobre a hanseníase, por assunto e estado da Federação.

 

Os resultados acima explicam muito sobre a realidade da endemia nesses estados e no Brasil. Comparando-se as porcentagens de desconhecimento dos médicos sobre a doença, nos cinco estados onde foi realizada a avaliação, nota-se claramente que, onde a hanseníase é tida como eliminada, quanto maior o tempo decorrido desde atingido o status de eliminação, como em SC e RS, tanto mais há desconhecimento dos médicos sobre a doença. Isto ocorre pela falsa ideia de que a doença já está erradicada, ou mesmo pelo total desconhecimento da doença, que é negligenciada durante a graduação, e não é vista em hospitais universitários. Assim, nestes estados, explica-se a situação frequente de peregrinação dos pacientes, até que seja realizado o diagnóstico em um centro de referência, de forma tardia. Por exemplo, em SP, segundo dados da Secretaria Estadual de Saúde, 9,8% dos pacientes foram diagnosticados com grau de incapacidade visível em 2010. Um trabalho recentemente publicado na Revista da Sociedade Brasileira de Medicina Tropica, em 2010, entretanto, realizado em centro de referência, mostrou um panorama mais sombrio, com até dois terços dos pacientes diagnosticados já com incapacidades instaladas. No Instituto Lauro de Souza Lima, entre 2007 e 2011, cerca de um terço dos pacientes diagnosticados com hanseníase, provenientes do estado de SP, tinham grau de incapacidade visível (Grau 2) no momento do diagnóstico, a despeito da “eliminação da doença no estado”.

Nos estados onde há treinamento frequente, como no MT e MS, por exemplo, a sensação de grande parte dos médicos é, logicamente, de que a prevalência não se alterou. Isto se explica pela alta incidência local, onde também há pouca possibilidade de que o profissional não tenha contato com um portador da doença ou algum caso próximo conhecido.

Outro fato, também bastante grave, é a noção equivocada de que o diagnóstico tem que estar respaldado por um exame laboratorial, que a maioria desconhece como é realizado. Essencialmente, o diagnóstico de um caso de hanseníase deveria ser realizado pela história clínica, epidemiológica e pelo exame físico, que são considerados as bases da Medicina. Segundo Noordeen, um expoente mundial da Hansenologia, uma boa história clínica e epidemiológica, aliada a um exame dermato-neurológico completo, permite o diagnóstico da maioria dos casos de hanseníase. Mais ainda, como a doença é extremamente polimorfa, sua fase inicial, chamada hanseníase indeterminada, não tem exame laboratorial confirmatório com alta sensibilidade e especificidade. Mesmo o exame histopatológico, considerado padrão-ouro para o diagnóstico da doença, em mais de 50% dos casos não confirma o diagnóstico, assim como a baciloscopia e a sorologia, que também são negativas. Alie-se isto ao período de incubação longo e assintomático, em uma população geralmente social e culturalmente desfavorecida, temos um cenário altamente propício para a manutenção da endemia.

O preconceito, e o estigma da doença, ainda são grandes. O desconhecimento sobre a hanseníase gera medo de se tocar no paciente, e de ser contaminado pelo contato próximo, situação que é pior, sobretudo, no estado de SP. Este fato não deveria ser esperado, já que este é o estado com maior qualidade de atenção médica no País, com quase 5 mil vagas de residência médica pagas pelo SUS, além de ter dois centros de referência em hanseníase, e cerca de 20 serviços de residência médica em Dermatologia, credenciados pela Sociedade Brasileira de Dermatologia.

Por último, e não menos importante, é o grande desconhecimento dos médicos sobre o manuseio da doença e de suas complicações. A hanseníase se caracteriza por lesar nervos periféricos, incapacitando a maioria dos pacientes afetados, que, em uma distribuição normal, segundo Ridley (1974), pertencem ao grupo dimorfo. Os indivíduos deste grupo possuem capacidade de montar resposta inflamatória, mas não se curam espontaneamente, o que os leva a ter neurites crônicas e de forma precoce. A inflamação neural repetida, principalmente se mal conduzida, leva a destruição de nervos periféricos, incapacitando o paciente, além de causar o estigma e preconceito relativos à doença. Pelos resultados das respostas dos médicos evidenciadas no quadro 1, pode-se explicar o alto grau de incapacidade dos pacientes com hanseníase nos estados onde a doença é tida como eliminada, e onde um portador de hanseníase tem, além do diagnóstico tardio, um prognóstico reservado.

Se não houver um enfrentamento da situação, com priorização do ensino sobre a doença na graduação, além do treinamento em serviço, em massa, dos profissionais de saúde que já atuam nas unidades básicas, é bem pouco provável que a doença tenha sua incidência reduzida nos próximos anos. Mais dados sobre a situação virão da pesquisa a ser realizada pelo Ministério da Saúde/OPAS, que vai, em breve, avaliar a qualidade da atenção ao paciente portador de hanseníase em todos os estados, por meio do Exercício de Monitoração da Eliminação da Hanseníase (LEM), instrumento altamente informativo sobre a realidade da descentralização e qualidade dos serviços. Até lá, esforços de todos devem ser empregados no sentido de diagnosticar e tratar todos os pacientes afetados, o mais precocemente possível, e o tratamento completo, que inclui administração da PQT e manuseio das intercorrências, deve ser de alta qualidade, compatível com o país rico que somos e que queremos.


* Jaison Antônio Barreto é MD, PhD, dermatologista e hansenólogo



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