Escrito por Antonio Quinto Neto*


A medicina sempre foi um empreendimento arriscado onde as esperanças de benefício e cura estiveram associadas à possibilidade do fracasso (1). Sabemos que o risco do dano e insucesso se encontra intrinsecamente incorporado à prática médica, ainda mais quando atuamos nas fronteiras do conhecimento e da experiência. A nobreza de nossa atividade, contudo, não nos imuniza de falhas e acidentes assistenciais capazes de produzirem danos nos pacientes atendidos.

Esperávamos, com o avanço da medicina, que o dano se tornasse apenas um fato histórico. Ledo engano! A despeito dos maravilhosos resultados que obtemos, persiste o potencial, com a diferença que agora ele pode ser mais grave e em pacientes mais informados e propensos a reivindicarem direitos.

Quem atua na área cirúrgica já ouviu falar ou vivenciou a troca de paciente devido um nome similar, a execução de cirurgia no lado errado do paciente, ou a cirurgia errada no paciente. Aqueles que atuam na área clínica reconhecem erros relacionados com medicamentos, seja na dosagem ou na forma de apresentação ou outra deficiência, eventuais interpretações erradas de exames, e assim por diante. Também é da vivência da maioria dos médicos atuantes a identificação de falhas que não produziram qualquer dano ao paciente. O drama, no entanto, instala-se quando o paciente é prejudicado por um ato médico.

Fomos treinados com a idéia de que “o bom médico não erra”. A cultura médica tradicional concebe a segurança assistencial como uma propriedade emergente de médicos comprometidos e competentes (2). Dentro deste enfoque, quando um paciente sofre um dano, este foi causado por um médico que não é comprometido ou competente, seja pelos limites da ciência, pela idiossincrasia do paciente, ou mesmo pelo reduzido controle profissional.

É indiscutível que deve ser parte da índole dos médicos a disposição de fazer o bem e utilizar o melhor do conhecimento na assistência aos pacientes, porém isto não assegura na atualidade a prestação de uma assistência segura e eficaz (3). Entretanto, ainda utilizamos com freqüência a subjetividade e a complexidade da medicina para racionalizar e justificar nossas falhas e acidentes.

Se os médicos mais cuidadosos e experientes efetuarem, honestamente, uma avaliação das suas práticas profissionais, irão identificar pequenas e grandes falhas, ou mesmo acidentes de variadas proporções. Tem-se observado que falhas e acidentes assistenciais ocorrem até com os mais experientes. Porém o que mais tem surpreendido na pesquisa sobre segurança do paciente é que a maioria das falhas e acidentes se deve às características dos sistemas nos quais os profissionais trabalham (4). O que em parte já se sabia de forma empírica, agora se confirma: somos falíveis e boa parcela das falhas e acidentes se origina de condições estruturais e processos precariamente projetados que, portanto, colocam em risco os pacientes e nós. A atuação individual continua cumprindo o seu papel na segurança da assistência, porém ela é muito menor do que se pensava.

Quando a segurança das ações assistenciais tem como referência o indivíduo, a preocupação é identificar quem cometeu a falha ou o acidente, julgar e punir, como é a disciplina profissional, a suspensão, o litígio, a exclusão, o afastamento da assistência ao paciente, e assim por diante. Constitui-se em uma abordagem centrada na cultura da culpa que reconhece as falhas e os acidentes assistenciais como decorrentes da incompetência individual, da falta de cuidado e/ou do julgamento deficiente (2).

Não seria um exagero afirmar que na atualidade a contenção de falhas e acidentes assistenciais, através do controle da conduta individual do médico caracterizada como negligente, imprudente e sem perícia, tornou-se limitada e injusta. As falhas e acidentes assistenciais se tornaram mais complexas, seja pelos procedimentos realizados seja pelo conjunto de profissionais envolvidos. Não há como desconsiderar a relevância das estruturas e processos através dos quais é oferecido o atendimento médico.

Como poderemos melhorar se não avaliamos nossas falhas e acidentes de uma forma que aumente o nosso conhecimento sobre como evitar ou reduzir uma nova ocorrência? A cultura da “culpa e castigo” estimula a omissão e oculta os nossos insucessos, ou quando somos identificados como eventuais suspeitos, criamos uma corrente de censuras que não contribui para o melhor entendimento do ocorrido. Frequentemente se vê médicos que recriminam médicos, enquanto as organizações de saúde trilham o caminho da isenção de responsabilidade. Ambos atuam baseados na autodefesa e, consequentemente, exibem uma conduta reativa.

Não estamos mais sozinhos! Não somos mais tão independentes quanto no passado. Estreitou-se a eficácia do modelo médico artesanal, onde a autonomia profissional era absoluta e os méritos eram exclusivos, enquanto os fracassos dependiam das debilidades dos pacientes ou mesmo da infra-estrutura das organizações de saúde. As condições atuais, com mais tecnologia e outros elementos estruturais, exigem um novo modelo que privilegie a comunicação e o trabalho em equipe – dois fatores escassos na assistência médica tradicional.

A segurança na assistência à saúde não é nem automática nem depende apenas do compromisso e da competência dos médicos. Mais do isto, representa uma meta que requer constante atenção, pensamento sistêmico, mensuração, estudo intensivo e, principalmente, ação, tanto prospectiva (antes que as coisas saiam erradas) quanto retrospectiva (depois que as coisas saíram erradas) (2). Sabemos que é difícil e perturbador cogitar que podemos, não intencionalmente, prejudicar pacientes, mas precisamos, corajosamente, assumir esta atitude para melhorar nosso desempenho assistencial e engrandecer a medicina.

Por que somos tão relutantes reconhecer os nossos erros em medicina? Ao supormos que somos perfeitos como médicos, as falhas e acidentes assistenciais se tornam fatos humilhantes. Acreditar na perfeição nos coloca em uma falsa e insustentável condição que cada vez mais aumenta nossa vulnerabilidade diante dos pacientes e da comunidade em geral.

Aceitar a inevitabilidade de nossas falhas e acidentes – e dos outros profissionais de saúde que compõem a equipe – representa um ato necessário de humildade. Se agirmos assim, os pacientes se sentirão colocados em primeiro lugar. O reconhecimento virá e conseguiremos sair da condição de vilões para líderes em defesa dos pacientes e da medicina.


Referências Bibliográficas 1. Vincent, C. Patient safety. Edinburg: Elsevier Churchill Livingstone, 2006. 2. Green, M. Human error in medicine. Visual Expert, july 2003. 3. Quinto Neto, A, Segurança dos pacientes, profissionais e organizações de saúde: um novo padrão da assistência à saúde. RAS, v. 8, n. 33: 153-158, out/dez 2006. 4. Keepnews, D., Mitchell, P. “Health systems’ accountability for patient safety”. Online Journal of Issues in Nursing, september 30, 2003, v. 8, n. 3, manuscript 2. www.nursingworld.org/ojin/topic22/tpc22_2.htm (last acesseded may 10, 2007).


* É médico psiquiatra, Mestre em Administração pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul, especialista em avaliação de organizações e sistemas de saúde.

 

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