Escrito por José Eduardo de Siqueira.*
Muito se tem comentado sobre os avanços que a Medicina nos apresenta, através de novas propostas terapêuticas em campos do conhecimento antes reservados ao território da ficção científica. Paradoxalmente, observamos que, ao mesmo tempo em que a sociedade recebe promessas de vida longa e saudável, a figura do médico torna-se menos valorizada e, cada vez mais, vemos a sociedade clamando por humanização da Medicina. Como explicar este enigma? Estariam os profissionais mal-formados e sem o adequado domínio das novas tecnologias?
A resposta parece ser negativa. Entretanto, é impossível negar que o relacionamento médico-paciente encontra-se significativamente comprometido. Cresce de maneira expressiva o número de denúncias contra médicos e a atividade judicante dos Conselhos de Medicina demonstra que 70% dos processos éticos instaurados, decorrem de inadequado relacionamento intersubjetivo entre esses atores. É certo, outrossim, que uma sociedade dominada pelo individualismo, onde o ser humano perdeu sua condição de sujeito, portador de dignidade e merecedor de respeito, muitos são os fatores que podem ser apresentados como causadores dessa catástrofe relacional.
Alguns pensadores, entre eles o sociólogo polonês Zygmunt Bauman, definem o mal-estar da pós-modernidade como tempos líquidos, em consequência da dissolução de todos os valores sólidos que nos acompanharam ao longo de nossa história. Sem pretender esgotar todas as complexas causas do insatisfatório relacionamento médico-paciente, apontaremos três, que nos parecem primordiais.
O primeiro, não por ser o mais importante, mas por deter maior visibilidade, é o representado pela influência negativa que as empresas farmacêuticas e de equipamentos médicos exercem sobre a conduta terapêutica dos profissionais. Estes fatos, inquestionavelmente prejudiciais, não justificam julgamentos apressados de satanização das mencionadas empresas, pois as regras impostas pela sociedade de mercado as obrigam a atitudes competitivas, nem sempre revestidas de eticidade.
O exemplar de 5 de maio de 2003 da Revista British Medical Journal foi inteiramente dedicado a expor os conflitos de interesses que permeiam a relação entre médicos e empresas farmacêuticas e de equipamentos. Todos estes fatos são bem conhecidos e acompanhados com responsabilidade pelos Conselhos de Medicina, que têm praticado um controle efetivo sobre eventuais desvios de condutas dos profissionais.
Os dois outros fatores que mencionaremos a seguir, embora de menor visibilidade, constituem elementos nucleares da crise de valores que domina a sociedade atual. O primeiro deles, muito bem analisado por pensadores como Ernest Jünger, Martin Heidegger e Hans Jonas, é o da sociedade em que a técnica ocupa posição privilegiada e convive com pessoas subjulgadas ao domínio de um véu tecnológico, assumindo assim a condição de um fim em si mesmo. Neste modelo, as pessoas deixam de perceber que a biotecnologia é apenas um braço prolongado da ciência e, portanto, complementar ao raciocínio do profissional.
Não se sabe exatamente como a fetichização da técnica se impõe sobre a psicologia humana e onde é possível identificar o limite entre uma interação racional e a injustificada superestimação. O certo é que o fascínio pela tecnologia domina toda sociedade, incluindo médicos e pacientes, o que fez com que Berkley cunhasse o mantra que lhe pareceu mais representativo do comportamento humano na pós-modernidade: “I like nice equipments”. Herdamos do século XX o mais extraordinário desenvolvimento da tecnologia biomédica que dominou nossas mentes e corações, a tal ponto que passamos a subestimar o raciocínio clínico, devotando desproporcional credibilidade à biotecnociência. Bernard Lown, professor emérito da Faculdade de Medicina de Harvard, em A arte perdida de curar, deplora a exagerada ênfase que as escolas médicas empregam na formação de profissionais que, segundo ele, serão meros “oficiais-maiores da ciência e gerentes de biotecnologias complexas, desconsiderando a genuína arte de ser médico. “O mais desconcertante diante desta situação é que parece cada vez mais distante a possibilidade de reconhecermos que a tecnologia é obviamente boa, entretanto, poderá ser prejudicial se utilizada de maneira insensata e imprudente.
A última variável, talvez seja a mais complexa e deve merecer maior atenção. Trata-se das mesquinhas escolhas morais que fazemos conduzidos pelo equivocado princípio de que tudo deve ser subordinado à soberania da vontade pessoal. A individualização, a perda do sentido de solidariedade, parece ser o mais importante fator desagregador da sociedade. A agenda da sociedade moderna está refém do comando autocrático da liberdade de escolhas individuais guiadas pela equação “eu posso – eu quero – eu faço”, o que nos fez perder os referenciais éticos da fraternidade e, como consequência, termos deixado de refletir sobre as três perguntas kantianas que balizam o comportamento ético de cada ser humano: O que é o homem? O que devo fazer? O que me é lícito esperar de minhas ações?
Estudo da UNESCO, realizado em Brasília, em que foram entrevistados jovens de classe média, submetidos a um inquérito sobre prática de valores morais, constatou-se que, na percepção deles, humilhar travestis, prostitutas, homossexuais e mendigos seria comportamento de menor gravidade quando comparado à pichação de prédios públicos, destruição de orelhões ou de placas de sinalização de trânsito; 20% dos entrevistados considerou injustificável qualquer forma de punição decorrente dos ultrajes impostos às mencionadas pessoas.
Cada vez torna-se mais necessário meditar sobre a indagação apresentada por Emmanuel Levinas: “Como podem esses sujeitos almejar um estatuto de humanidade e pertença se não se olham no rosto ou se olham com tanta brevidade?” Segundo o filósofo seremos dotados de humanidade na medida em que acolhermos todas as pessoas que nos cercam como seres biopsicossociais e espirituais e aceitarmos as responsabilidades que decorrem desse relacionamento sob a égide da ética da face.
* É coordenador do Curso de Medicina da PUCPR/Campus Londrina, presidente da Sociedade Brasileira de Bioética de 2005 a 2007, membro das Câmaras Técnicas de Bioética e Reprodução Assistida do CRM-PR e da Câmara Técnica de Terminalidade da Vida e Medicina Paliativa do Conselho Federal de Medicina (CFM).
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