Escrito por Elcio Luiz Bonamigo*

O Código de Ética Médica brasileiro, vigente desde o final da década de oitenta, admitiu em sua doutrina, entre outras coisas, muitos avanços relativos à autonomia do paciente que provinham da recém-nascida bioética. O bem elaborado texto tanto permite o entendimento do seu conteúdo doutrinário por parte dos médicos brasileiros em geral como assegura uma análise justa das suas condutas por parte das entidades responsáveis.

Centenas de sindicâncias e processos éticos são analisados à luz do Código de Ética Médica atual e, pelo que se percebe até agora, os conselheiros das Câmaras e Plenários que o interpretam na prática não se defrontam com freqüentes problemas. No entanto, alguns aspectos pontuais estão ausentes do código e outros, presentes, padecem de enfermidades classificáveis em estágios que vão desde leve até terminal.

Um defeito a ser tratado com a maior brevidade possível é o dever imposto ao médico, previsto no artigo 51, de salvar compulsoriamente a vida do paciente em greve de fome, quando em risco de morte, mesmo contra a sua vontade. Neste sentido, temos dois livros nacionais que comentam o Código de Ética Médica e os seus autores estão em posições diametralmente opostas nos comentários a este artigo. De um lado (1), há quem discorde de forma radical: “Pois então que puxe o gatilho. Só que de greve de fome leva mais tempo”. Do outro lado (2), está quem concorde: “Ainda assim, a obrigação de alimentar alguém em perigo iminente de morte não é só um imperativo ético, mas a essência da própria profissão médica, como instrumento inescusável em favor da vida.”

Esta segunda posição, pelo que se pode vislumbrar no panorama internacional, está com os dias contados. Os Códigos de Ética Médica espanhol, português e italiano, por exemplo, respectivamente dos anos 1985, 1999 e 2006, já desobrigaram os seus médicos deste incômodo dever, respectivamente através dos artigos 9º, 57 e 53 dos seus códigos, confirmando a tendência mundial. O código espanhol prevê a possibilidade de encaminhamento para decisão judicial. O italiano proíbe o médico de participar de iniciativas constritivas ou manobras coativas para alimentação. O português proíbe expressamente o médico de participar ou adotar a iniciativa de alimentação coerciva.

O consentimento do paciente é essencial e a liberdade de decisão por parte do paciente é soberana também em greve de fome. Ao médico, do ponto de vista ético, caberia oferecer as informações necessárias, sendo esta a sua ação hipocrática em defesa da vida, sem adotar salvamentos falsamente heróicos de alimentação compulsória se o paciente manifestou antecipadamente, de forma consciente e sem vacilação, a sua vontade contrária, através de testamento vital (que é outro assunto a ser considerado pelo novo código) ou outra forma de manifestação de vontade. Evidentemente não podem ser aqui incluídas as pessoas que sofrem de anorexia, geralmente jovens adolescentes do sexo feminino com problemas psíquicos associados.

Recentemente, a Associação Médica Mundial, através da atualização da Declaração de Malta, feita em 2006, parece ter dado o tiro de misericórdia neste infesto dever ao considerar oficialmente que a alimentação forçada nunca é eticamente aceitável.

A alimentação oral compulsória não é admissível, mas, deve ser registrado, existem decisões judiciais que obrigam e as que desobrigam a forma parenteral de alimentação. Esta doutrina está em construção (3). Isto é verdade. No entanto, neste longo caminho o viés é nítido e a participação do médico deve ser particularmente estudada e revista.

Neste mesmo sentido, mas já partindo para outro aspecto a ser analisado, estão os artigos 46 e 56 do nosso Código que obrigam o médico a adotar providências para salvar paciente testemunha de Jeová através da transfusão sanguínea. Ocorre que, nestes quase 20 anos de vigência do Código, muitas coisas evoluíram e especificamente neste aspecto houve uma verdadeira revolução setorial com a descoberta de substitutos do sangue e outros recursos avançados que podem efetivamente evitar a transfusão.

Estas inovações, por um lado, precisam ser do conhecimento médico. Por outro lado, seria desejável que tais recursos estivessem disponíveis para serem utilizados. Quando indisponível, e ainda possível, o médico deveria transferir os cuidados do seu paciente para quem disponha de tais recursos antes de simplesmente invadir a sua autonomia. Tudo isto sempre em defesa da vida do paciente, mas com respeito. Em contrapartida, se internado em local onde a única alternativa seja a transfusão, o paciente deve pedir alta voluntária caso não concorde (4). E quando for uma criança? A interpretação geral existente é distinta em situações de emergência.

Embora se discuta a participação de representantes da sociedade na reforma do Código de Ética Médica entende-se ser aqui conveniente ou até mesmo indispensável a inclusão destes interessados uma vez que poderão aportar informações fundamentais, bem como legitimar o processo.

Outro aspecto que vem apresentando extraordinária evolução científica é a genética. Os médicos, de uma forma ou de outra, lidarão com assuntos genéticos na sua profissão. Declarações internacionais emitem orientações éticas entre as quais estão: a proibição para modificar células germinais, as formas disfarçadas de eugenia e os diversos aspectos de reprodução humana. A proibição de atuar em linha germinal está contemplada na Declaração Universal sobre o Genoma Humano e Direitos humanos da UNESCO e Resolução CNS nº. 340/2004. A seleção de sexo, exceto para evitar doença grave, está proscrita por muitos Códigos internacionais e pela Declaração sobre Técnicas de Reprodução Assistida da Associação Médica Mundial (2006). O diagnóstico preditivo, já previsto na Resolução CNS nº. 340/2004 e nos documentos citados, também precisa ser incluído, quiçá correlacionando-o ao sigilo. O código atual é praticamente omisso nestes tópicos e precisa incluir expressamente algumas destas orientações de assuntos emergentes na prática médica.

O consentimento informado está previsto, mas não está formalmente regulamentado no Brasil, nem pela Lei e nem pela Ética. No exterior já está previsto na legislação de países como Espanha e Itália e nos respectivos Códigos de Ética. A sua importância foi solidificada pelo artigo 6º da recente Declaração universal de Bioética e Direitos Humanos da UNESCO de 2005. Enquanto a nossa lei é omissa, seria conveniente ocupar esta importante lacuna prevendo claramente no teor do código brasileiro os procedimentos em que a sua redação escrita é obrigatória, ou quando basta o consentimento verbal.

Em caso de incapacidade temporária ou permanente é preciso também respeitar as vontades antecipadas que constituem o testamento vital do paciente. Trata-se de assunto que o novo Código também deveria mencionar por ser emergente e de interesse atual. No momento em que o paciente se torna incapaz, a sua vontade prévia, quando de conformidade com a lex artis, continua a prevalecer.

Outros assuntos atuais já estão sendo preparados pelos organizadores da reforma do Código para serem incluídos na discussão pelas inovações existentes, dentre os quais se destacam: telemedicina, nanotecnologia, robótica, publicidade e fim de vida.

O Código Penal brasileiro e o antigo Código de Hamurabi expressam suas penas aos infratores no enunciado do próprio artigo. Os Códigos de Ética não fazem isto e, do ponto de vista internacional, nem existe esta tendência em fazê-lo, segundo alguns que foram pesquisados. Tal método seria até mesmo insólito uma vez que, por exemplo, argentinos, colombianos, equatorianos, espanhóis, italianos e norte-americanos não adotam tal prática. O próprio intróito do atual Código diz que em seu teor existem “normas éticas”. Fiquem, portanto, as penas e respectivas orientações de aplicação para o Código de Processo Ético-Profissional, espantando a inclusão deste aspecto excessivamente judicial-penalista em um Código moral.

Com base estritamente nos comentários até agora feitos bastaria uma reforma pontual para a atualização do Código de Ética Médica de 1988. No entanto, aquilo que se analisa à luz de vela pode não ser verdade à luz do sol.

A Ética é uma parte da filosofia que possui seus próprios princípios. Existem observações de que no Capítulo I do nosso Código de Ética alguns deveres estariam catalogados como princípios (1). Talvez seja esta a explicação para os nossos dezenove princípios, enquanto o código espanhol tem seis e o português apenas três. De qualquer forma, nenhum possui princípios tão pedagógicos quanto aqueles quatro da bioética norte-americana (beneficência, não maleficência, autonomia e justiça) que todos conhecem de cor e salteado por estarem claramente conceituados e identificados embora haja críticas sobre o empobrecimento causado por tal reducionismo.

Os princípios da ética médica não poderiam ser tão poucos como os da bioética e nem podem ambos continuar a dizer as mesmas coisas, ignorando-se mutuamente. Os princípios bioéticos têm o seu lugar do Código de Ética Médica. Todos eles e muitos outros. Paradoxalmente, embora alguns existam de fato, os princípios bioéticos não estão identificados nem mesmo entre os dez do Principles of Medical Ethics da AMA – American Medical Association (5) dos Estados Unidos, país que foi o berço do denominado “principialismo”.

Vários princípios morais constam efetivamente no atual texto do nosso código, mas precisariam ser identificados pelo nome, tais como: da não discriminação (1º), da beneficência (2º), da atualização (5%), da não maleficência (6º), da autonomia (7º), da confidencialidade (11), da preservação ambiental (13), da solidariedade (15) etc. Existem ainda outros princípios altamente utilizados na prática da tomada de decisão pelos médicos que não foram incluídos, nem citados, seja no Código do Brasil, seja naqueles do exterior. Alguns destes princípios, que mantêm relação com o principio bioético da não maleficência, são: da totalidade, do mal menor e do duplo efeito, usados em dilemas que vão desde a amputação de membro à histerectomia por tumor maligno de um útero grávido. As suas menções enriqueceriam ainda mais o texto deontológico. A precaução (cautela) há pouco tempo deixou de ser uma virtude pertencente à prudência filosófica para ser um principio que iniciou no meio ambiente e se difundiu para a medicina onde, entre muitas outras coisas, poderia auxiliar na avaliação dos riscos dos avanços médicos e, até mesmo, nos critérios de afastamento cautelar do médico em processo ético-profissional quando sobram evidências, mas faltam provas.

Também chama a atenção o fato de que a maioria dos Capítulos inicia com: “É vedado ao médico”. Esta metodologia parece desproporcionalmente proibitiva, podendo ser mais orientadora, em sintonia com os Códigos Internacionais recentemente atualizados. Teria sido necessário tanta austeridade? Parece que sim (6). Sim para alguns conteúdos, mas talvez não desta forma generalizada na sua futura apresentação. Vamos ver. Caso estas teses e outras sejam adotadas, ocorreria uma reforma estrutural do novo Código que, além de atualizado, ressurgiria com sua fisionomia totalmente renovada.

* É conselheiro federal suplente.

* As opiniões, comentários e abordagens incluidas nos artigos publicados nesta seção são de inteira responsabilidade de seus autores e não expressam, necessariamente, o entendimento do Conselho Federal de Medicina (CFM).


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