Escrito por Henrique Batista e Silva*

 

A proliferação desordenada de escolas de medicina no Brasil que se tornou um instrumento do Governo com o objetivo de responder as demandas de assistência de saúde da população brasileira merece uma reflexão cuidadosa, haja vista, dados que comprovam o desacerto desta medida.

O príncipe Dom João VI foi o responsável pelo início do ensino médico no Brasil. Tudo começou em 18 de fevereiro de 1808, quando ele autorizou a criação do curso de medicina da Universidade Federal da Bahia e nove meses depois o da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Foram necessários outros 90 anos para que o País ganhasse uma terceira instituição, dessa vez na Universidade Federal do Rio Grande do Sul.

De lá para cá, muita coisa mudou e nem todas para melhor. É certo que o avanço na implantação do sistema formador de médicos no Brasil foi lento.  Em pouco menos de dois séculos, foram criadas 82 instituições de ensino deste tipo, sendo que 33 privadas. Mais da metade desse total surgiu no auge dos governos militares, como parte de uma estratégia de ocupação dos enormes vazios populacionais do interior brasileiro.

No entanto, apesar do ritmo intenso das aberturas naquele período, houve preocupação em fazer com que as novas escolas fossem cenários adequados de formação profissional, com corpo docente qualificado, boas instalações e, principalmente disposição para a incorporação de metodologias de ensino-aprendizagem, que tornaram vários médicos formados no Brasil referências internacionais.

Constatamos que nos últimos 20 anos, essa cautela foi abandonada. Outras 175 escolas de medicina foram abertas, muitas delas sem evidentes condições de funcionamento, com temerários prejuízos para os futuros profissionais – sem o preparo de graduação necessária -, para os pacientes e para o próprio exercício ético da medicina brasileira, que viu seu padrão de excelência ser rebaixado no embate enviesado entre a quantidade versus a qualidade.

O governo federal tem se apegado ao discurso de que o Brasil precisa de mais médicos e que, para isso, é preciso oferecer uma quantidade de vagas em novos cursos para atender essa demanda. No escopo da Lei 12.871/2013 está prevista a criação de cerca de 12 mil vagas até 2018, o que fará com que o País forme por ano mais de 25 mil novos médicos. Argumenta-se que é necessário chegar ao número mágico de quatro médicos por grupo de mil habitantes, como em alguns países da Europa.

Os gestores atuais, com interesses em ações midiáticas de alcance imediato, numa demonstração de ausência de visão de estratégia de longo prazo aos interesses da sociedade, ignoram que o Brasil vive um momento de inversão de sua curva demográfica. Se por um lado, a população em geral reduziu o seu ritmo de crescimento, por outro lado a dos médicos permanece sua tendência de alta. 

Dados do estudo Demografia Médica no Brasil já evidenciavam que entre 1970, quando havia 58.994 profissionais, e o último trimestre de 2012, o número de médicos saltou 557,72%. O percentual é quase seis vezes maior que o do crescimento da população no período, que aumentou 101,84%. Nesse diapasão, com as medidas adotadas, esta discrepância deve ter se aprofundado ainda mais.

Pesquisa recente, desenvolvida pela Universidade de São Paulo, mostra que – levando em consideração estes fatores e o tempo de atividade dedicado ao exercício da medicina pelos egressos das escolas (calculado em 43 anos) – o País precisaria, no máximo, de três mil novas vagas em curso de medicina para atingir o equilíbrio almejado.

Esquecido do debate democrático com as entidades de classe e representantes da academia, o Governo criou um superávit indevido de milhares de vagas que certamente não atenderão as expectativas de um projeto construído em função de lastros ideológicos e de matizes políticos partidários.

Em reiteradas oportunidades, o Conselho Federal de Medicina, a Associação Médica do Brasil e a Federação Nacional dos Médicos tem afirmado não há mais necessidade de nenhum curso de medicina novo no Brasil. O que o Brasil precisa é de médicos com formação de qualidade e de uma política de valorização do trabalho do médico.

Não bastasse o discurso das entidades médicas, com base em análises estatísticas e demográficas, o Governo fecha os olhos ainda a outros aspectos relacionados ao processo de expansão desenfreada de escolas médicas no Brasil e que, certamente, prejudicarão a assistência de saúde.

O primeiro se relaciona à má qualidade das instituições de ensino que têm sido credenciadas.

De acordo com o levantamento Radiografia das Escolas Médicas do Brasil, preparado pelo Conselho Federal de Medicina (CFM), dos 42 municípios que receberam escolas médicas de 2013 a julho de 2015, 60% (25) não atendem à previsão legal de cinco leitos do Sistema Único de Saúde (SUS) para cada aluno de medicina matriculado. Este critério estava previsto em diretrizes do Ministério da Educação que estabeleciam regras para a abertura de escolas médicas no período.

Mas este não é o único problema existente. 42% (18) desses municípios também não têm Equipes de Saúde da Família (ESF) em quantidade suficiente para acolher os alunos dentro do processo de ensino-aprendizagem.

A Radiografia feita pelo CFM identificou ainda que dentre os 158 municípios que abrigam pelo menos uma das 257 escolas médicas já em funcionamento menos da metade (69) possui ao menos um hospital de ensino. No total, em 89 municípios que hoje sediam um curso de medicina não têm nenhum estabelecimento deste tipo, estrutura fundamental para que a capacitação dos futuros médicos.

Outro segundo ponto desconsiderado pelo Governo neste processo é que em países onde a razão de médicos por habitantes é superior à média brasileira atual (2/1000) o acesso à assistência não se apoia unicamente nesta proporção. Em todos há um conjunto de ações que colocou a saúde como prioridade dentre as políticas de Estado, com maior financiamento público, investimento em infraestrutura e recursos humanos e gestão moderna, eficiente e transparente.

No que concerne ao financiamento da gestão saúde no Brasil, informações do Banco Mundial apontam que enquanto a média mundial de gastos públicos em saúde era de 6,08% do Produto Interno Bruto (PIB), em 2012, o relativo dispêndio no Brasil limitava-se a apenas 4,32%. Em países com modelos assistenciais semelhantes ao Sistema Único de Saúde (SUS), como a Inglaterra e a Alemanha – sempre apontados como referências – estes percentuais ficavam, respectivamente, em 7,78% e 8,61%.

Há de se notar que na Alemanha, 76,28% de todo o gasto em saúde era bancado pelo Estado, e, na Inglaterra, essa proporção tinha um índice de 82,51%, números bem mais significativos que o atual índice brasileiro de 46,42%.

As consequências dessas escolhas de gestão – sem vínculo direto com o número de médicos, no caso do Brasil, aparecem em outro estudo recente. A Pesquisa de Informações Básicas Municipais (Munic) de 2014, apresentada no fim de agosto pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), revela que mais da metade (52,1%) dos 5.570 municípios brasileiros precisou encaminhar pacientes do SUS para outros locais em busca de internação. 

Outra constatação calamitosa, verifica-se na Alta e Média Complexidade. Apenas em 6,5% das cidades brasileiras existe disponibilidade de UTIs Neonatal em estabelecimentos públicos ou conveniados ao SUS e somente 49,6% há estabelecimentos da rede pública que realizam o parto. Nos últimos 11 anos foram fechados mais de 23 mil leitos de hospitais no pais.

Os fatos são mais que argumentos, são realidades que atestam a ausência de políticas indutoras de Estado para a Saúde. Em lugar de construir respostas estruturantes para a área, o Governo passou a transitar no perigoso do terreno das medidas paliativas, sem uma percepção clara das repercussões que causarão ao longo dos anos.

O incentivo a criação de faculdades de Medicina, que surge como forma de maquiar problemas mais graves, sem condições de formar profissionais com qualificações mínimas para prestar bons serviços constitui hoje um problema concreto.

A formação profissional do médico deve ser entendida no terreno das políticas estruturantes, a qual não pode estar subordinado a gestões imediatistas, que denunciam o risco de se estar criando mera linha de montagem para efeitos numéricos.

Fica evidente que a multiplicação dos cursos de Medicina não resolve, por si, o problema da assistência no Brasil. Não foi assim nos tempos imperiais, nem durante os governos militares e não será agora que o parâmetro mudará.

A formação do médico brasileiro se faz com a percepção política de boas práticas de saúde, e para que alcancemos este desiderato, torna-se necessário médicos em quantidade e com qualidades suficientes para que a população brasileira seja bem atendida, respeitando seus valores humanísticos.

 
* É secretário geral do Conselho Federal de Medicina.

 
    

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