Escrito por Marcio de V. Pinheiro
Com um certo desgosto, quem sabe até mesmo indignação, assisto meio impotente à agonia da Medicina tal como eu a conheci. Se eu hoje tivesse de escolher uma profissão, apesar de ainda ter as mesmas motivações, talvez não a escolhesse mais. Do mesmo modo, não aconselho mais nenhum jovem idealista seguir essa nobre profissão que hoje está sendo tão desrespeitada, invadida, a ponto de se tornar irreconhecível no meio de tantos interesses poderosos que pouco têm a ver com o atendimento de pessoas enfermas.
Já sei que, como médico, quando protesto contra o lugar que me está sendo reservado no atual sistema de saúde brasileiro, corro o risco de ser taxado de ganancioso, gastador e até mesmo desonesto, um profissional que precisa ser gerenciado por homens de negócios “bem intencionados” que se anunciam como protetores dos meus pacientes.
Conheço bem essa orquestrada cantiga que visa me calar quando, sufocado, grito por socorro. Ela vem dos investidores na saúde que desviam para si o dinheiro suado dos cidadãos, que naturalmente têm medo de precisar de um médico ou hospital e não poderem pagar. Esses empresários da saúde, que vêm ganhando a batalha política, querem agora ganhar a opinião pública para que o sistema se perpetue gerando lucros, dividendos e altos salários.
Com o apoio do governo brasileiro, quem sabe pressionado por entidades internacionais, eles “tomaram conta” da saúde no Brasil. Ainda bem que esse sistema de saúde que vem sendo adotado no Brasil (essa colcha de retalhos com as Unimeds, Planos, Seguros e Auto-Gestões), não é o mais prevalente no mundo. Apesar disso não ser muito divulgado, ele está sendo instalado somente nos Estados Unidos e em países do terceiro mundo, onde empresas norte-americanas e locais se unem em “joint ventures”.
Se compararmos esse sistema com os de outros países como o Canadá, Inglaterra, França, Alemanha e Suécia, concluiremos que ele é o mais perverso de todos – para médicos e pacientes. O sistema canadense, por exemplo, é um modelo universal e eficiente lá chamado de Medicare, que funciona há mais de 40 anos e atende à saúde de toda a população desde os mais ricos aos mais pobres. Por atender a todos, o sistema funciona bem por pressão popular como ocorre numa democracia. É um sistema descentralizado onde cada província tem uma certa autonomia para lidar com o dinheiro da saúde que lhe é repassado. Elas negociam com as Associações Médicas os honorários médicos e os tratamentos oferecidos.
Os médicos e hospitais são agentes particulares, escolhidos livremente pelos cidadãos em resposta aos seus bons serviços prestados. Cada canadense tem a sua carteira de saúde e com ela a liberdade de procurar o médico e o hospital que lhe convier, na hora aflitiva da doença. É fácil entender porque o atual sistema de saúde se instalou com tanta facilidade no Brasil. O nosso governo não quer gastar com a saúde e quer aliviar o orçamento do SUS. O aparecimento dessas empresas reduz esses gastos. O cidadão, que já está contribuindo com seus impostos para a Saúde Pública, fica apavorado frente ao atendimento insatisfatório que dela recebe, e passa a contribuir duas vezes: os impostos e mais os prêmios dos seguros-saúde.
Forma-se então um círculo vicioso. Se o SUS fosse minimamente adequado, as pessoas não sentiriam a necessidade dos planos e seguros de saúde. Já pensou quem iria comprar esses planos se o SUS oferecesse um bom atendimento? Assim, para garantir o mercado para as empresas de saúde é necessário que o atendimento do SUS permaneça desmoralizado. No “Estado de Minas” do dia 26 de março de 2002, uma carta do leitor Hélvio F. Moreira termina assim: “Entra e sai governo, independentemente de partidos, o descaso com a saúde da população continua, assim como a lógica do sistema: quem tem dinheiro que pague um plano de saúde; quem não tem, que se vire para ser atendido”. Isso é um fato notório, clamor popular em todo o País!
O sistema instalado no Brasil representa a promessa do fim da Medicina tal como eu a conheci. Investidores, chefes-executivos e administradores coletam o dinheiro das prestações mensais e fazem decisões sobre o seu uso ou não para atendimentos médicos por eles chamados de “perdas médicas”. É fácil compreender que o sucesso dessas empresas irá depender da economia nas suas “perdas médicas”, isso é, honorários médicos e tratamentos. Quanto maior for um, menor será o outro.
Não é uma lógica perversa? Daí para frente começa o pesadelo para médicos e pacientes, tudo sob uma bem engendrada cobertura legal. Os médicos passam a ter um novo patrão que determina – a seu bel prazer – quanto valem os seus serviços e o que ele pode e o que não fazer pelos seus pacientes. O sistema foi tão bem engendrado que os médicos “credenciados” têm tido negado o seu direito elementar de negociar coletivamente com as empresas os seus honorários, condições de seu trabalho e tratamentos oferecidos. Eles não são considerados empregados e sim profissionais liberais autônomos “credenciados”, e estão sendo enquadrados em leis anti-cartel. Num sistema neo-liberal como o nosso, que depende do equilíbrio de forças e interesses, o fato dos médicos estarem sem representação gera desequilíbrio no sistema para o lado das empresas, sem que haja um contraponto que os represente. E os pacientes-usuários perdem muito como isso! Até mesmo nos Estados Unidos, modelo do nosso atual sistema, Projetos de Lei já estão sendo propostos para corrigir essa injustiça. Além da Lei dos Direitos dos Pacientes, que está para ser votada, a lei Campbell-Conyers (HR 1304) que isenta os médicos que atendem pacientes dessas empresas das leis anti-cartel foi aprovada no ano passado na Câmara Federal, mas morreu no Senado. Esse Projeto permitiria que os médicos negociassem em bloco não só os seus honorários, mas também as suas condições de trabalho. Esse ano já existe um outro projeto lei, o “Health Care Antitrust Improvements Act of 2002” que se empenha em permitir a mesma coisa. Fórmulas perversas foram inventadas para forçar os médicos a oferecerem tratamentos inadequados. Uma delas é a chamada “captação” onde o médico recebe uma quantia fixa por segurado e daí para a frente todos os gastos com a saúde dos mesmos correm por conta do médico. Já pensaram num médico colocado nessa situação onde o dinheiro que ele leva para casa é o que sobra depois de pagos todos os tratamentos por ele recomendados? Um outro, um pouco mais sutil, atrela o honorário do médico aos exames de laboratório, quanto mais exames ele pede, menos honorários ele recebe. E assim por diante. Muitos médicos estão aceitando essas precárias condições de trabalho porque o número d profissionais está aumentando cada vez mais com a instalação de mais Escolas de Medicina no país. As conseqüências desse atual sistema de saúde no Brasil são péssimas e óbvias. Podemos prever que a qualidade dos nossos médicos irá se deteriorar significativamente nos próximos anos. Quem vai querer ter honorários vis decididos unilateralmente por empresas de saúde? Quem vai querer fazer atendimentos em condições de trabalho precárias, aumentando os riscos de erros médicos? A distância entre o que seriam atendimentos médicos adequados e as condições de trabalho impostas por essas empresas vai aumentando cada vez mais, apesar das boas intenções do governo de regular o mercado. Se os médicos não tiverem o direito de negociar com as empresas, o sistema irá permanecer desequilibrado com sérios prejuízos para os pacientes. Alarmado ao ver a minha profissão desaparecer no meio de interesses completamente alheios às nossas motivações, fico desejando que esse desequilíbrio seja corrigido por nossos Poderes Legislativo, Executivo e Judiciário, para o beneficio de nossa cidadania – como um todo. Se isso não for feito logo, só o tempo dirá onde iremos parar.
* As opiniões, comentários e abordagens incluidas nos artigos publicados nesta seção são de inteira responsabilidade de seus autores e não expressam, necessariamente, o entendimento do Conselho Federal de Medicina (CFM). * Os textos para esta seção devem ser enviados para o e-mail imprensa@portalmedico.org.br, acompanhados de uma foto em pose formal, breve currículo do autor com seus dados de contato. Os artigos devem conter de 3000 a 5000 caracteres com espaço e título com, no máximo, 60. |