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Henrique Batista e Silva*

 

Em Dom Casmurro, quando o imperador Pedro II tenta convencer a mãe de Bentinho do prestígio social que gozava a medicina no final do século 19, ele diz: “A medicina é uma grande ciência: basta só dar saúde aos outros, conhecer as moléstias, combatê-las, vencê-las…”. Nesta curta frase, o autor do livro, Machado de Assis – um dos maiores nomes da literatura brasileira –, define o lugar do médico na modernidade.

Este locus desse profissional no contexto evolutivo tem acompanhado o desenvolvimento da história, que continuamente reserva aos médicos status de relevância social, desde os seus primórdios.

Para Umberto Eco, quando Petrarca colocou o homem no centro do universo, em contraposição ao pensamento escolástico, a historiografia passou a compreender o advento da modernidade como uma transição nítida, quase brusca, do medievo. Entende o mestre que o que se convencionou chamar de mudança dos tempos históricos constitui-se um processo de transição, no qual coexistem visões diferentes que se amolgam e se substituem gradativamente.

De um lado, o medieval se via às voltas com suas intermináveis discussões teológicas sobre a natureza divina em que se estabelecia um saber que não perturbasse a ordem estabelecida, baseado em fórmulas cabalísticas, frases cifradas, dogmas. Por sua vez, os tempos modernos, nas franjas da passagem do medievo, nasciam com a concepção de que o saber haveria de ser consolidado e público.

Sobre as incertezas metafísicas e religiosas dos humanos, Diego Gracia afirma que todo o saber é contingente, não existindo verdades absolutas, como se pretendia no medievo, mas construídas.

Entende-se que no âmbito das ciências as hipóteses devem ser conhecidas, comparadas, debatidas, refutadas, confirmadas para ser divulgadas, conforme o entendimento de Karl Popper.

Neste sentido, o saber, como ciência, no atual momento histórico da pós-modernidade, vem perdendo seu sentido absoluto, apodítico, para o de uma percepção baseada nas probabilidades.

No campo da medicina, estas visões também coexistiram e ainda coexistem. Se nos tempos medievais os médicos se utilizavam de recursos que mais pareciam metáforas de um conhecimento hermético, no período da modernidade surge a figura do médico em espaço assimétrico de relacionamento com o paciente, paternalismo médico, onde o profissional dita todas as regras, ancorado em suas prerrogativas sociais, científicas e legais.

Esse médico – cria da modernidade – age baseado em conhecimentos científicos e tecnológicos, ainda que limitado pelas incertezas éticas entre a melhor escolha e os danos possíveis desses avanços.

Na pós-modernidade, a prática da medicina deixa de ser exercida com protagonismo médico, onde somente ele dita a verdade do diagnóstico e dos procedimentos terapêuticos, para ser cada vez mais compartilhada em suas decisões com o paciente. Constitui-se uma relação médico-paciente onde o lugar do médico se relativiza no âmbito das autonomias envolvidas.

Ressalte-se, no entanto, que os diferentes modos de agir não implicam contraposição entre normas éticas antigas e atuais, haja vista que são os mesmos princípios da moralidade humana – autonomia, justiça, beneficência, respeito, dignidade – que justificam seu estamento na sociedade.

Neste percurso de assunção para uma medicina de concepção benigna humanitária se tornou necessário que o médico cuidasse do paciente como pessoa que deve ser respeitada em seus direitos personalísticos.
Indo além deste entendimento, sem o obscurecer, em razão de a medicina atual ter como concepção metafísica o imperativo tecno-científico, urge a premência de o médico ser mais sensível à espiritualidade da pessoa humana, onde residem suas crenças, suas vocações artísticas, sua religiosidade, seus interesses, enfim, suas visões cosmológicas e existenciais.

Assim, as humanidades em medicina – compreendidas como o universo composto das artes, como a literatura, a música, o teatro, o cinema, a pintura – podem contribuir para a boa formação do médico e a melhor prática da profissão no período contemporâneo.

Na mesma senda de amplitude, as humanidades médicas promovem, simultaneamente, fronteiras e formas de integração com outras disciplinas humanísticas, dentro de um movimento de singularidade e de multidisciplinaridade, como a história, a antropologia, a sociologia, a comunicação social, a bioética e as artes em geral, como música, literatura e cinema.

Todos esses campos do conhecimento e da prática humana nos encaminham para a acepção de humanismo referido pelo ministro Carlos Ayres Britto, ao considerar esse termo polissêmico “um conjunto de princípios que se unificam pelo culto ou reverência a esse sujeito universal que é a humanidade inteira”.

Há inúmeros exemplos de como as artes podem servir como moldura para uma medicina mais humanística. No Brasil, atualmente, existem escolas médicas que dispõem em seus currículos de disciplinas desse campo do conhecimento humano. Isso materializa o crescente interesse acadêmico pela introdução nos projetos pedagógicos das disciplinas de saber humanístico.

Esse fenômeno decorre da relevância de que o médico compreenda o homem como organismo dotado de componentes que ultrapassam a concretude do ser humano em si e que se estendem aos seus elementos fundantes como ser biopsicossocial.

Nesse arcabouço, entendida a medicina em sua imanência como uma disciplina comprometida com a saúde do ser humano, ou em busca da sua recuperação quando fragilizada pela doença, é possível estabelecer um referencial dialógico entre o médico e a pessoa doente baseando-se nos princípios do respeito e da solidariedade humana.

Para tanto, a partir da modernidade, no fluxo do Iluminismo, destaca-se o princípio da liberdade nas decisões humanas, fundamental nos seus direitos, que permite ao homem se constituir como sujeito livre, ao afirmar que somente pela sua emancipação pode alcançar a dignidade humana.

No entendimento de Elma Zoboli, a relação médico-paciente ocorre no espaço onde “dois iguais em situações distintas que em um encontro intersubjetivo têm a corresponsabilidade de construir o cuidado, trocando fatos, emoções, sentimentos, crenças, enfim, muito mais que apenas os dados, sinais, sintomas e resultados de exames”.

Esse processo ocorre nos limites das relações humanas definidos em um mundo líquido baumaniano “como consequência do estabelecimento de uma associação entre as mudanças na condição humana, o afastamento das velhas gerações e a chegada dos mais novos”.

Apesar de sua credibilidade – com base na razão, na ciência e na legislação –, o que confere legitimidade à medicina é o paciente, a parte mais fragilizada e reativa dessa relação com o médico. É nesse encontro que se espelham os dispositivos da moral e da ética médica contemporâneas, ao se afirmar que o motivo de ser da medicina é a saúde do ser humano e da coletividade.

Pode-se entender o espaço médico-paciente como um desdobramento que se faz presente em duas realidades: a da possibilidade de construir uma relação dialógica sustentada na melhor comunicação, em busca dos resultados favoráveis; e a da probabilidade de o paciente alcançar a cura ou o alívio dos seus sofrimentos embasada nas melhores evidências científicas.

A boa compreensão desse encontro existencial exige que se considere os valores do homem moderno, com ênfase em aspectos éticos que são critérios operativos do amplo espectro normativo de ação humana, realizados no respeito à vida humana, à livre expressão das ideias, à comunicação entre os humanos e exemplificados na diversidade dos seres humanos.

A medicina da pós-modernidade não deve ser exercida afastada dos fundamentos morais que lhe concedem sustentabilidade profissional. Segundo Werner Jaeger, em sua obra Paideia: a formação do homem grego, desde quando surgiu, a medicina esteve irmanada com a filosofia grega numa íntima e fecunda relação embasada no empirismo dos médicos e na metafísica dos gregos. O relevo da medicina se deu em razão do fato de a cultura grega estar orientada tanto para o corpo como para o espírito.
Na pós-modernidade, em decorrência da persistente dualidade entre os deveres sociais conferidos ao médico e a necessidade de ele respeitar o paciente em sua singularidade, a relação médico-paciente deve ser continuamente construída em suas bases ancestrais da moralidade humana.

Aracaju, 18 de agosto de 2018.

 

* É conselheiro federal representante do estado de Sergipe e secretário-geral do Conselho Federal de Medicina.

 

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