Escrito por Rogério G. F. Cordeiro e por Luz Marina Trujillo*
“Devemos avançar de uma ciência eticamente livre para outra eticamente responsável; de uma tecnocracia que domina o homem para uma tecnologia que esteja a serviço da humanidade do próprio homem”8. Hans Kung
A Bioética é o território a partir do qual ocorre o confronto de saberes entre os problemas surgidos do progresso das ciências biomédicas, das ciências da vida e, em geral, das ciências humanas1.
Alguns temas tem sido objeto de preocupação da Bioética entre os quais contracepção, aborto, eutanásia e dignidade da morte, distanásia, transplante e doação de órgãos, tecnologia de fecundação humana, esterilização, uso de psicofármacos, drogas, contaminação ou degradação da biosfera, problemas de justiça social na distribuição de recursos em saúde e responsabilidades para gerações futuras1,10.
A palavra Bioética surgiu em 1970, e resulta de um neologismo que une ética e a Biologia, estabelecendo valores éticos e fatos biológicos para sobrevivência do ecossistema10.
Bioética é o estudo sistemático do comportamento humano na área das ciências da vida e dos cuidados da saúde, quando se examina esse comportamento à luz dos valores e dos princípios morais, de acordo com a Enciclopédia de Bioética1,10.
A discussão sobre ética vem sendo enfrentado por vários autores – em diferentes épocas históricas – muito embora somente conheçam as normas éticas dos últimos milênios. Certamente deve haver um princípio ético supremo, que perpassa a pré-história e a história da humanidade13. Para quem trabalha na área da saúde, tais temas podem parecer até longínquos, mas o fato é que eles terão de ser enfrentados, cedo ou tarde. Não há espaço para omissão, é preciso lutar para unir os conhecimentos científico e humanista segundo Sgreccia10.
Um aspecto muito próximo de quem trabalha na área da saúde é a pesquisa que envolve seres humanos.
Segundo alguns autores, não se deve confundir Bioética com a ética profissional, cujo nome mais adequado seria Deontologia Profissional, muito embora no Código de Ética da Profissão Farmacêutica nos itens I,II,III,IV,V e VI do artigo 19 da Seção V , da Resolução CFF 290/96 ”Da Pesquisa Farmacêutica”, haja uma interseção entre a Deontologia e a Bioética6.
O Código de Ética Médica se relaciona em alguns artigos e capítulos direta ou indiretamente com a pesquisa envolvendo seres humanos. Códigos de outras profissões da área da saúde, no que se refere a estas pesquisas, são menos completos do que o referido código, podendo algumas vezes remeter certas decisões para outras instâncias, como por exemplo, o Conselho Nacional de Saúde7.
A discussão de temas sobre Bioética vai muito além da revisão de um protocolo de pesquisa envolvendo seres humanos. No Brasil um marco nas ações em Bioética foi a Resolução 196/96 que fornece um direcionamento para uma análise de pesquisa, fundamentada em entendimentos internacionais e nacionais, de forma a harmonizar critérios e exigências em pesquisas envolvendo seres humanos11. Tal Resolução regulamenta diretrizes e normas de pesquisa envolvendo seres humanos, preocupação esta de longa data dos pesquisadores e estudiosos e que faltava consolidar-se em forma de norma.
Esta Resolução fundamentou-se em documentos internacionais de onde emanaram declarações e diretrizes sobre estas pesquisas, além de consultas a vários segmentos da sociedade brasileira, tendo como base a Legislação Nacional. Relação de documentos que fundamentaram a Resolução 196/96 1916 Lei 3.071 e legislação complementar. Código Civil-Congresso Nacional
1940 Decreto-lei 2.848 e legislação complementar. Código Penal – Presidência da República do Brasil
1946 Código de Nuremberg. Tribunal de Guerra
1948 Declaração dos Direitos Humanos.
Organização das Nações Unidas-ONU
1962-2000
Declaração de Helsinque(1962). Modificada em 1964, Atualizada em Tóquio (1975), Veneza(1983), Hong Kong (1989), Sommerset West (Africa do Sul)(1996), Edimburgo (2000) – Associação Médica Mundial-AMM
1966 Acordo Internacional sobre Direitos Civis e Políticos.(Aprovado pelo Congresso Brasileiro em 1992)-ONU
1968 Declaração de Sidney.
Atualizada em Veneza em 1983.
Determinação do momento da morte e dos tratamentos da fase final da doença – AMM
1982 e 1993
Diretrizes Éticas Internacionais para Pesquisas Biomédicas. Organização Mundial da Saúde-OMS
1987 Princípios de Ética Médica.Comunidade Econômica Européia
1988 Constituição da República Federativa do Brasil.
Assembléia Nacional Constituinte
1988 Resolução nº 01/88.
Norma de Pesquisa Médica no Brasil.
Conselho Nacional de Saúde-CNS
1990 Lei 8.078. Código de Defesa do Consumidor -Congresso Nacional
1990 Lei 8.069. Estatuto da Criança e do Adolescente-Congresso Nacional
1990 Lei 8080. Lei Orgânica da Saúde-Congresso Nacional
1990 Lei 8.142. Participação da comunidade na gestão do SUS-Congresso Nacional
1990 Decreto 99.438. Organização e atribuições do CNS -Presidência da República do Brasil.
1990 Decreto 98.830. Coleta, por Estrangeiros, de dados e materiais científicos no Brasil –
Presidência da República do Brasil.
1991 Diretrizes Internacionais para Revisão Ética de Estudos Epidemiológicos -*CIOMS/OMS
1992/93 Lei 8.489/92 e Decreto 879/93
Retirada e transplante de tecidos, órgãos e partes do corpo humano, com fins terapêuticos, científicos e humanitários
Congresso Nacional e Presidência da República do Brasil
1992
Lei 8.501.
Utilização de cadáver não reclamado, para fins de estudos ou pesquisas científicas – Congresso Nacional 1995 Lei 8.974. Normas para uso das técnicas de Engenharia Genética e liberação no meio ambiente de organismos geneticamente modificados e criação da Comissão Técnica Nacional de Biossegurança -Congresso Nacional
1995 Diretrizes sobre Boas Práticas para Ensaios de Produtos Farmacêuticos. OMS
1996 Lei 9.279. Regula direitos e obrigações relativos a propriedade industrial-Congresso Nacional 1996 Resolução nº 196/96. Diretrizes e normas regulamentadoras de pesquisas envolvendo seres humanos – CNS
* CIOMS: Council for International Organization of Medical Sciences
A Igreja Católica vem enfrentando questionamentos sobre Bioética em diversos momentos, por meio do Concílio Vaticano II, Encíclica Humanae vitae, Sagrada Congregação para a Doutrina da Fé. Os temas referem-se a conceitos de homem e de família, aborto provocado, questões da moral sexual, esterilização nos hospitais católicos, eutanásia, respeito a vida humana nascente e a dignidade da procriação, dentre outros10.
Outras igrejas cristãs e outras confissões religiosas também formularam propostas, haja vista as orientações do Conselho Ecumênico da Igrejas das Genebra relativas ao aborto e ao diagnóstico pré-natal (“ manipulating life: ethical issues in genetic engineering” -1982)10.
O mundo Islâmico também tem tratado de questões sobre o assunto, no código Islâmico de Ética Médica -198110.
A discussão de temas em Bioética deve se estender além dos limites das instituições de ensino e pesquisa, passando a ser estimulada em diversos locais, como indústrias farmacêuticas, áreas de produção de imunobiológicos e hemoderivados, em seus diversos staffs.
No Brasil já há centros que se preocupam com o conhecimento mais aprofundado e robusto em Bioética. Ocorre por meio de disciplinas de graduação e pós-graduação, criação de núcleos e sociedades científicas, assim como promoção de seminários, simpósios e congressos, intercâmbio com outras instituições no exterior, elevando a produção e divulgação de temas no nosso meio.
Já existem experiências de Comitês de Ética em Pesquisa, CEP, no Brasil que estão se consolidando com sucesso, como o que ocorre no Instituto Adolfo Lutz desde 1997. A tendência é o fortalecimento dos CEPs, e a multiplicação das publicações que tratam de suas experiências, que auxiliam a formação e evolução de novos comitês. Alem disso é “ um forte impulso à reflexão Bioética” conforme Sgreccia9,10,12.
O CEP deve ter caráter multi e transdisciplinar, não devendo haver mais do que a metade de seus membros pertencentes à mesma categoria profissional, participando pessoas dos dois sexos, constituído por um número não inferior a sete membros e pelo menos um deles da sociedade representando os usuários da instituição. Poderá ainda contar com consultores ad hoc, pessoas pertencentes ou não a instituição, com a finalidade de fornecer subsídios técnicos2.
Esta composição permite que a pesquisa, desde a sua proposta, seja avaliada sob vários pontos de vista, de maneira ampla, instrumentalizada por princípios religiosos, filosóficos, culturais, políticos, econômicos, sociais, metodológicos, científicos e éticos levando-se em conta os hábitos e costumes presentes em determinada época14.
Deve-se mencionar também a ética em experimentação animal, que tem preocupado tanto a comunidade científica quanto a sociedade civil organizada. Em vista disso têm sido introduzidos novos conceitos de princípios humanitários nas técnicas experimentais como os princípios do 3Rs (replacement, reduction, refinement), substituição, redução e refinamento; estes conceitos têm sido apresentados e discutidos em eventos técnico-científicos na área da saúde. Na área de desenvolvimento de fármacos e produtos farmacêuticos a Resolução 251/97 CNS/MS incorpora todas as disposições contidas na Resolução 196/96 complementando com disposições da área temática específica de pesquisa com novos fármacos, medicamentos, vacinas e testes diagnósticos3.
Esta norma trata da verificação de boas práticas de pesquisa clínica, avaliação de projeto de pesquisa de Farmacologia Clínica (Fases I,II,III,IV) de produtos não registrados no país e estudos de Biodisponibilidade e Bioequivalência 3.
A Indústria Farmacêutica, ao desenvolver um novo tratamento, poderá realizar experimentos clínicos planejados, juntamente com universidades, hospitais públicos e privados, institutos de pesquisa e centros credenciados, submetendo o protocolo de pesquisa à apreciação do CEP institucional e, em muitos casos, com encaminhamento à Comissão Nacional de Ética em Pesquisa, CONEP, quando pertinente, ou seja, quando se tratar da competência dessa instância.
Para conhecer as Instituições que têm seu CEP aprovado pela CONEP até 01/2/2001, pode-se consultar os Cadernos de Ética em Pesquisa, publicação da CONEP, ou buscar informação junto a própria comissão por meio do site do Conselho Nacional de Saúde, do Ministério da Saúde, CNS/MS4,5.
À guisa de conclusão, a Bioética é a lente de aumento, que podemos utilizar como instrumento para ampliar nossas reflexões sobre o objeto de pesquisa, tendo a vida como principal valor, e sua conservação e de gerações futuras com melhor qualidade.
Este é o desafio que temos o dever de enfrentar.
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* Farmacêutico. Doutor em Saúde Pública- Faculdade de Saúde Pública/USP Farmacêutica. Mestre em Saúde Pública- Faculdade de Saúde Pública /USP. Pesquisador Científico/IAL
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