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Conselho Federal de Medicina

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Antonio Ferreira Couto Filho*

 

 

As décadas de 1980 e 1990 foram caracterizadas, no cenário jurídico brasileiro, pela coroação dos chamados “direitos sociais”. A Constituição Federal de 1988 – denominada “Constituição Cidadã” –, as leis infraconstitucionais, o Código de Defesa do Consumidor, o Estatuto da Mulher, o Estatuto do Idoso, o Estatuto do Menor, a Lei das Associações e muitas outras que foram editadas nesse período próspero de paternalismo e casuísmo nos fazem refletir sobre a máxima do ensaísta, filósofo, poeta e prosador Gibran Khalil Gibran, de origem libanesa, que nos legou seus escritos simples e repletos de espiritualidade: “o exagero é a verdade que perdeu a calma”.

Nos tempos hodiernos, estamos pagando o preço por exagerar na dose de proteger e defender direitos sociais de forma desproporcional. Já agora, estarrecidos e manietados, nos tornamos expectadores da nossa dura realidade, passando pela derrocada dos poderes democráticos e assistindo ao Estado Democrático de Direito subsumido aos instrumentos protetivos de vicissitudes, amoralidades e aeticidades, logicamente, gerando impunidades e privilegiando o caos e a ilicitude, uma absoluta destruição dos valores de conduta, mas aqui trataremos dos processos judiciais contra médicos.

Provar que não errou, dentro de uma ação judicial, mesmo que seja infundada ou pouco comprometida com a verdade dos fatos – tendo em vista a avalanche de leis protetivas e casuísticas, como veremos em sequência – custa muito caro ao médico, tanto financeira quanto moralmente, tornando-o alvo fácil de incontáveis ações com caráter “lotérico”. Temos que o crescimento dessas ações é avassalador, avolumando-se ano a ano, razão pela qual surgiu o elemento securitário, de muitas formas e preços, encarecendo sobremodo o custo fixo do profissional médico e gerando distorções e despreparo para o desenvolvimento salutar da competente e necessária relação médico-paciente.

Na outra ponta, em função desse fenômeno casuísta e paternalista, os pacientes – mesmo os negligentes e os imprudentes – gozam da isenção de pagamentos de custas e honorários, nada têm que provar dos fatos que alegam e, sob o manto constitucional do dano moral, podem pedir quanto quiser, vez que foram, exageradamente, pré-qualificados como hipossuficientes e consumidores, mesmo que não o sejam moralmente. Tudo em detrimento do médico, outra pessoa humana que essas leis casuísticas e paternalistas trataram ao arrepio das garantias individuais da Constituição, gerando preconceito e desigualdade entre pessoas e afirmando, exageradamente, ser ele hipersuficiente e comerciante, mesmo que não o seja moralmente.

Assim, podemos avaliar o quanto ainda terá que sofrer o segmento por conta de não ouvir Gibran. Ambos são cidadãos e merecem ser alvo de proteção do mais importante princípio constitucional, o da dignidade da pessoa humana, mas o que temos é preconceito e distorção. Juristas trazem a alegação que são leis desiguais para tratar desigualdades, sem perceber que usar o velho adágio de “o justo paga pelo pecador” atacou a estrutura moral e ética da relação médico-paciente, trazendo a indústria das indenizações e esse terror que encarece o sistema com seguros e transforma a judicialização em “demanda reprimida”.

Ao paciente, gratuidade de justiça, inversão do ônus da prova e dano moral ilimitado. Com esse ambiente extremamente favorável a tarefa de processar o médico torna-se atraente e um verdadeiro convite aos espertos e que vivem de expediente, pois podem investir na “loteria judicial”. Ao médico, sendo ensinado a fazer seguro contra seu doente, restou se ver processado e pagar honorários de seu advogado para se defender, não raro, de uma acusação destituída de fundamento e descomprometida com a boa-fé objetiva e a eticidade.

Há casos verdadeiros de culpa médica, até um ou outro caso de dolo, não se faz aqui apologia à culpa ou ao crime. Mas em realidade, tanto o Código Civil Brasileiro quanto o Código Penal Brasileiro dispõem de artigos que punem e restabelecem a reparação do eventual dano experimentado pelo paciente, o que torna inócua e danosa à saúde da população brasileira essa legislação desnivelada que nos mostra exagero.
Somos mais de duzentos milhões de brasileiros e, com mais de treze milhões de desempregados e uma constituição que “brinca” com seus cidadãos ao dizer que a saúde tanto é dever do Estado quanto é um negócio de saúde suplementar para a iniciativa privada, fica a reflexão sobre o crescente número de ações contra médicos: elas vão diminuir?

O médico, decano ou residente, deve pautar seu comportamento de acordo com as assertivas anteriores, pois tratam do Brasil de hoje, mas devemos ter em mente que o paciente não é inimigo, não é alguém que deve ser evitado ou destratado, tampouco é alguém que requeira medidas prévias em detrimento da relação e que aumente seus custos fixos. O paciente é a materialização da sua missão de ser útil e viver com dignidade.

Temos que entender que a legislação brasileira está adversa e rígida em desfavor do médico ético e probo, mas há que se pensar que o paciente chega em condições fáticas desfavoráveis; portanto, a mantença da boa relação médico-paciente é o caminho. O prontuário é o lugar de se depositar boas provas para ambos. Ali se verificará a boa-fé objetiva, ali até se observará relato sobre conduta imprudente de paciente ou de seu representante. Enfim, a ideia é que o prontuário seja a escrita sucinta e clara da realidade fática.

Esse registro é sempre revestido de singularidade e ímpar importância. Ele não pertence ao médico,  que tem a obrigação de mantê-lo em bom estado e à disposição de seu proprietário, além de guardar o mais absoluto sigilo profissional sobre ele, sob pena de crime. Desse modo, que seja o prontuário a prova viva de toda a boa relação profissional, na qual se inclui transcrever os resultados dos exames que o médico sempre entrega ao paciente.

Ressaltamos aqui o caráter otimista e realista da nossa visão nessa questão da relação médico-paciente no Brasil, uma vez constatado o exagero de que trata Gibran, entendendo que todos podemos ser processados e que o bom e velho “olho no olho” e um prontuário claro e consistente, somados ao consentimento informado (quando for o caso), são elementos imprescindíveis para que o esculápio promova sua defesa, mormente pelo fato de que a prova pericial, regra geral, é sempre norteadora do julgamento judicial, pois sempre irá propugnar pela ciência médica e estará calcada nos artigos científicos e protocolos da especialidade.

No mais, realizem-se na bela missão/profissão que elegeram!

 

* É presidente da Comissão de Biodireito do Instituto de Advogados Brasileiros (IAB) e Consultor Jurídico do Colégio Brasileiro de Cirurgiões (CBC)

 

    

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