Escrito por Andrey Oliveira da Cruz*
Após a divulgação da notícia de que o atual Governo utilizará uma moratória para a suspensão da abertura de cursos de medicina no País pelo período de cinco anos, uma série de comentários tem tomado conta das redes sociais e dividindo opiniões sobre o assunto.
A moratória, fruto de uma negociação e apelo entre as entidades médicas e o Ministério da Educação (MEC), surge a partir de divergências antigas e debates criados a partir da promulgação da Lei nº 12.871, de 22 de outubro de 2013, também conhecida como “Lei dos Mais Médicos”.
Atualmente, vivemos em um país que partiu do discurso falacioso de que escolas médicas fixariam profissionais em regiões carentes, permitindo a abertura irresponsável de faculdades de medicina em um número nunca antes visto. Hoje o Brasil ocupa o segundo lugar em quantidade de escolas médicas em funcionamento, atrás somente da Índia, que possui uma população de 1,2 bilhão de habitantes, em comparação aos 207 milhões de brasileiros.
Em contradição ao discurso político usado como base para abertura de novas escolas, vivenciamos a realidade dos nossos sistemas de saúde sucateados, tanto o público quanto o privado, oferecendo saúde de qualidade a uma parcela muito pequena da população. Ainda em relação a isso, a abertura indiscriminada de novas escolas em regiões mostra que o número de faculdades de medicina já é alto proporcionalmente à população.
De acordo com estudos da Demografia médica no Brasil (SCHEFFER, 2015), a região Norte contava com razão de 1,09 médico por mil habitantes, e o Nordeste, 1,3, ambas abaixo da média nacional de 2,09. Em contrapartida, a região Sudeste, por si só, apresentava taxa de 2,75 médicos/mil habitantes, acima da média nacional.
Anos após a criação do Mais Médicos, estamos colhendo os primeiros frutos do programa e seus impactos na educação médica no País. Apesar disso, já é possível perceber que tal política muito pouco influenciou na fixação de novos médicos em pequenos centros, uma vez que não foi acompanhada de planos a longo prazo para reconstrução e desenvolvimento dos sistemas de saúde deteriorados, tampouco para a criação de um plano de carreira no serviço público de saúde e revisão dos pisos salariais e tabelas de serviços que incentivassem o maior comprometimento dos egressos.
Ainda no mesmo panorama, vemos a situação piorar com a baixa disponibilidade de serviços de residência médica suficientes para atender a expansão no número de profissionais médicos e sua distribuição desordenada pelo País, associado à irrisória bolsa de residência médica, que incentiva a mão de obra barata dos profissionais recém-formados e vai de encontro aos princípios da educação médica continuada.
Diante desse cenário, ainda vivenciamos a propaganda populista de que o bloqueio na abertura de escolas médicas é contra a saúde da população e o acesso de estudantes carentes na formação médica. O que me faz perguntar: nossa medicina é pra quem?
Hoje a faculdade de medicina possui gênero, classe social, cor e diversas outras definições bem especificadas. O perfil do estudante de medicina é do estudante jovem, branco, de classe média alta, com acesso a ensino básico privado e, muito provavelmente, cursos pré-vestibulares. Mesmo com os atuais projetos de ações afirmativas, políticas como o Prouni permitem o acesso de, geralmente, 10% de estudantes de baixa renda, em um país onde o financiamento estudantil e as ações de auxílio ao estudante são basicamente inexistentes.
Ao mesmo tempo, continua a abertura de escolas médicas, privadas, de mensalidades que beiram o absurdo de 7 a 10 mil reais, em regiões já abastadas de faculdades de medicina no País, como o Centro-Sul do Brasil. Quando associamos a abertura de escolas em pequenos centros, ainda lidamos com a ausência de hospitais-escola e educadores capacitados para o ensino da medicina e a formação de boa qualidade, prática e teórica, de nossos profissionais. Para finalizar o quadro, o crescimento dos cursos de preparação para as provas de residência médica, os “cursinhos”, confirmam a privatização e o privilegiado acesso à formação médica em nosso país.
Se o acesso aos cursos de medicina é tão específico que somente uma parcela tão privilegiada pode usar essa formação, devemos repensar nosso modelo atual de acesso ao ensino e aprofundar o nível do debate. O que, novamente, me faz perguntar: nossa medicina é para quem?
* É acadêmico do 5º ano do curso de medicina da Faculdade de Ciências Médicas e da Saúde da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP).
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