Lúcio Flávio Gonzaga Silva*
Compliance é uma palavra anglo-saxônica originada do verbo inglês to comply, que significa agir de acordo com as normas. Estar em “compliance” é estar em conformidade com leis, regras e regramentos.
Pensando em uma empresa, no princípio o setor de compliance estava agregado ao setor jurídico. Acredita-se que os advogados, por terem nas leis seu objeto de trabalho, as entendem melhor. À medida que compliance caiu na compreensão de todos, assim como sua importância para a própria sobrevida empresarial, as grandes corporações passaram a criar um departamento próprio, surgiu o Departamento de Compliance. No entanto, sabe-se que quanto mais forte for a cultura ética entre os funcionários, menor a necessidade de um programa ou de um Departamento de Compliance.
Porém há uma diferença crucial entre compliance é ética. Compliance foca no respeito às normas e leis que norteiam a prática profissional, a atividade de uma empresa e as relações de negócio. Ética, por seu turno, preocupa-se com os valores, com a consciência de quão é importante seguir as normas de conduta de uma profissão, do trabalho ou de uma organização para alcançar o objetivo maior: o bem-estar e a satisfação do cliente.
Ou seja, enquanto “compliance” significa como eu observo as normas (como faço), “ética” significa por que eu observo as normas (por que faço). A consciência do valor de agir em compliance constitui a ética.
No âmbito dos Conselhos de Medicina, resta evidente sua histórica e contínua atuação no campo do compliance, através do Código de Ética Médica (CEM) e de suas resoluções, que buscam moldar as condutas médicas na direção da boa prática, em respeito ao prestígio social da profissão hipocrática, em respeito ao prestígio social do médico. Contudo, as regras definidas pelos conselhos buscam fundamentalmente a garantia do cumprimento daquilo que está prescrito no segundo princípio fundamental do CEM: “O alvo de toda a atenção do médico é a saúde do ser humano, em benefício da qual deverá agir com o máximo de zelo e o melhor de sua capacidade profissional.”
O principal alicerce da atividade profissional médica é a relação médico-paciente baseada na confiança . São deveres inarredáveis para bem construí-la a atualização do conhecimento, a busca permanente por novas informações, a atitude de não exagerar com meios diagnósticos e condutas terapêuticas, o zelo e o trato diligente das pessoas. Para o médico, as prioridades são a vida, a saúde, a cura da doença, o benefício da atenuação da dor e do sofrimento e o amparo do doente. Para atingir todos esses objetivos, é pertinente adotar medidas éticas condizentes e de compliance.
No dizer do saudoso professor Paulo Marcelo Martins Rodrigues: “acolha aqueles que sofrem, ainda que em respeito à sua própria alteridade”.
Um aspecto importante da boa prática da medicina passa pela qualificação profissional e pela qualidade da assistência. São relacionadas, mas não iguais. Segundo o dr. José Cechin, diretor executivo da Federação Nacional de Saúde Suplementar, a qualificação profissional é condição necessária, mas não suficiente para a qualidade. É preciso somá-la a uma atitude relacionada ao caráter humanitário da medicina, o que reflete na qualidade da assistência. “Mais coração nas mãos, irmão”, como dizia São Camilo de Lellis. A medicina é uma arte essencialmente humana. Conheça todas as teorias, domine todas as técnicas, mas ao tocar uma alma humana, seja apenas outra alma humana, como afirmou Carl Gustav Jung, psiquiatra e psicoterapeuta suíço. Porque, como disse certa vez o médico espanhol nascido em Barcelona no final dos anos 1820, José Letamendi de Majarrés: “El que sólo sabe medicina ni medicina sabe.”
Sobre a qualidade da assistência médica, enfatizo alguns atributos tirados de Donabedian em seu trabalho Evaluating the quality of medical care, de 1966. É preciso avaliar se o método escolhido para o tratamento do enfermo tem eficácia (resolutividade em situação ideal), efetividade (resolutividade no contexto real, na prática) e eficiência (melhor resultado possível com o menor uso de recurso, ou seja, menor custo). Também é preciso notar se são observados parâmetros como a otimização de meios e tempo para melhor tratar o paciente, a aceitabilidade – acesso do paciente aos métodos de diagnóstico e tratamento – e os aspectos concernentes à relação médico-paciente, ao conforto que deve ser ofertado e ao respeito aos valores pessoais, às crenças individuais e à equidade (considerar o contexto do indivíduo e da sociedade e priorização em tratar a pessoa, mesmo que contrarie os interesses sociais).
Assim, a qualidade da assistência médica se situa em duas dimensões: uma percebida pelo paciente e circunstantes com forte componente subjetivo (o que é bom pode não ser entendido assim e vice-versa), e outra técnica, conectada a uma base científica racional, a qual deve atender os princípios bioéticos da beneficência e da não maleficência e, obviamente, deve estar antenada com a modernidade. Nesse processo, o paciente não é visto como um objeto de intervenções médicas, mas como sujeito que tem desejos e pode e sabe fazer escolhas.
Segundo Danilo Perestrelo no livro Medicina da pessoa, o grande desafio da medicina de hoje é conseguir que o médico não seja ele próprio iatrogênico.
Uma matéria do programa Fantástico, da Rede Globo, veiculada em janeiro de 2016, chocou o Brasil. Ela mostrou uma série de situações irregulares na prescrição e comércio de órteses, próteses e materiais especiais (OPMEs), o que gerou forte mobilização do Governo, do Congresso Nacional e das entidades médicas e um impacto negativo na sociedade.
A exposição de má prática exercida por poucos macula, de forma indelével, a imagem da profissão médica e corrói o prestígio social de muitos. Uma pequena minoria inescrupulosa prejudica, por sua atitude inadequada, o prestígio da grande maioria dos médicos perante a sociedade brasileira. Isso preocupa o Conselho Federal de Medicina (CFM) e os Conselhos Regionais de Medicina (CRMs), assim como as entidades médicas e a categoria médica do Brasil como um todo.
No parlamento brasileiro, em consequência, aceleraram-se os projetos de lei (PLs) visando a estabelecer padrões para coibir a prática delituosa. Há cinco PLs em tramitação, dos quais destaco três:
• O PL 2453/2015, que estabelece o treinamento continuado e atribui ao Estado a competência de fornecer treinamento permanente a médicos nas áreas de novas tecnologias. A meta é romper a fidelidade dos profissionais às empresas que financiam cursos, criando um vínculo antiético entre o setor privado e o médico;
• O PL 2451/2015, que trata das demandas judiciais e fixa uma série de regras para a concessão de urgência aos pedidos feitos à justiça para fornecimentos de implantes e medicamentos;
• O PL 17/2015, que propõe a necessidade de obediência ao CEM e às resoluções do CFM e dos CRMs e determina a aplicação de multa aos profissionais e empresas da área de saúde, caso recebam ou paguem comissões pela prescrição de OPMEs.
Infelizmente, há um acumulado histórico que estimula práticas defeituosas. Um exemplo emblemático: a defasagem dos valores pagos pelo Ministério da Saúde a hospitais que atendem o Sistema Único de Saúde (SUS) de mais de 400% nos últimos seis anos, em comparação com a inflação do período.
De acordo com levantamento feito pelo CFM, de 1.500 procedimentos hospitalares previstos na tabela SUS, quase 80% não têm, cronicamente, seus valores atualizados em acordo com os índices de aumento dos preços. O setor da saúde suplementar também não difere muito dessa realidade.
No entanto, para o setor da saúde suplementar surgiu, recentemente, a Lei nº 13.003/2014. Seu espírito busca reequilibrar a desigual correlação de forças do setor no Brasil. “Temos convicção de que a harmonia entre os três pilares da saúde suplementar – pacientes, prestadores de serviços médicos e operadoras – trará a necessária estabilidade do sistema, melhorando a qualidade dos serviços assistenciais”, ressaltou o conselheiro federal pelo estado de Goiás, dr. Salomão Rodrigues.A lei prevê a fixação de índices de reajustes e a periodicidade de sua aplicação.
Esses pontos sintetizam a visão do CFM, que propôs recentemente a criação de um mecanismo de fixação de preços (mínimos e máximos) para a venda de produtos médico-hospitalares e, ainda, que o tema deve ser tratado no âmbito da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA) e da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS).
Ressalte-se, por fim, que o CFM e os CRMs estão e estarão sempre comprometidos incondicionalmente com a defesa da ética no exercício profissional do médico e continuarão a colaborar com as investigações relacionadas às denúncias, com a fiscalização de casos suspeitos e com a formulação de regras que reforcem as boas práticas.
Finalizo afirmando que estou à disposição para o debate. Muito obrigado a todos.
*Conselheiro federal representante do Ceará e segundo-secretário do Conselho Regional de Medicina do Ceará (Cremec).
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