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Conselho Federal de Medicina

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Escrito por Roberto Luiz d´Avila e Diaulas Costa Ribeiro*

 

Dois fatos marcantes, ocorridos em 31 de agosto de 2012, merecem uma análise conjunta: a morte de Carlo Maria Martini, um jesuíta liberal que quase foi Papa, e a publicação da Resolução CFM 1995/12, do Conselho Federal de Medicina, que regulamentou as diretivas antecipadas de vontade, também conhecidas como testamento vital.

Umberto Eco nos ensinou que referir-se ao antigo Arcebispo de Milão pelo nome, sem alusão às vestes que envergou, é, antes de tudo, uma homenagem a ele. O próprio Carlo Maria Martini afirmava que o Evangelho não é muito benevolente com as “titulagens”, razão pela qual aceitava, com absoluta naturalidade, ser chamado pelo nome com que foi batizado, sem o título de cardeal ou o tratamento de eminência.

A coincidência entre esses dois fatos é maior do que a data em que ocorreram: Carlo Maria Martini, não custa lembrar, era um dos favoritos para suceder João Paulo II. Não fosse o mal de Parkinson que causou a morte do Papa e que, no processo de sua sucessão, já havia sido diagnosticado em Martini, provavelmente toda a Igreja Católica estaria de luto desde a última sexta-feira.

Infelizmente, Martini não teve vida para testemunhar a aprovação do projeto de lei que instituiria o “testamento biológico” na Itália. Ao contrário, viveu só o tempo para vê-lo rejeitado pelo parlamento. Também nós não tivemos tempo para fazer chegar a ele a notícia de que o Conselho Federal de Medicina aprovou a mencionada resolução, na qual impôs aos médicos o dever de respeitar as diretivas antecipadas de pacientes que se encontrem sem capacidade de comunicação ou de expressão livre e independente. Essas diretivas são definidas como um conjunto de desejos, prévia e expressamente manifestados, sobre cuidados e tratamentos que o paciente quer ou não receber no momento em que estiver incapacitado do exercício livre e autônomo de sua vontade.

A rejeição política ao projeto italiano não impediu Martini de recusar pessoalmente a obstinação terapêutica, nem o médico assistente, o neurologista Gianni Pezzoli, de respeitar as diretivas de vontade dele. Na resolução do Conselho Federal de Medicina ficou assegurada essa via, ou seja, o paciente poderá informar suas diretivas antecipadas de vontade ao médico, que as registrará no prontuário.

Mesmo não tendo feito uma escritura pública ou um documento equivalente, Carlo Maria Martini já havia tratado desse assunto em 21 de janeiro de 2007, no artigo “Eu, Welby e a morte”. Nesse texto, publicado poucas semanas após a morte do pintor e ativista italiano Piergiorgio Welby, portador de distrofia muscular em fase terminal que recusou esforço terapêutico, Martini dissentiu da posição oficial da Igreja de Roma, que se recusou à assistência religiosa e à disponibilização de um templo para as cerimônias funerárias de Welby, que acabaram realizadas em praça pública.

A defesa do direito à suspensão de esforço terapêutico feita naquela ocasião foi repetida em seu último livro, Crer e conhecer, publicado em março deste ano, no qual Martini escreveu: «As novas tecnologias que permitem intervenções cada vez mais eficazes no corpo humano requerem um suplemento de sabedoria para não prolongar os tratamentos quando não beneficiarem mais o paciente. É de grande importância nesse contexto a distinção entre eutanásia e suspensão de esforço terapêutico, dois termos muitos confundidos. A primeira se refere a um gesto que tende a abreviar a vida, causando positivamente a morte. A segunda consiste na “renúncia à utilização de procedimentos médicos desproporcionais e sem razoável esperança de êxito positivo”» (Compêndio Catecismo da Igreja Católica, nº 471). Evitando a obstinação terapêutica, continua Martini, «não se procura a morte: aceita-se não poder impedi-la (Catecismo da Igreja Católica, nº 2.278), assumindo-se, assim, os limites próprios da condição mortal do ser humano.»

Martini encerrou sua última lição teológica no delicado ponto em que o Conselho Federal de Medicina começou a Resolução: «Não se pode exigir uma regra geral, quase matemática, da qual se deduz a conduta adequada. Definir se uma intervenção médica é apropriada – ou não – impõe um atento discernimento que compreenda as condições concretas, as circunstâncias e a intenção dos sujeitos envolvidos. Em particular, não se pode desconsiderar a vontade do paciente, posto que a ele compete – também do ponto de vista jurídico, salvo exceções bem definidas – avaliar se os cuidados que lhe forem propostos, nos casos de excepcional gravidade, são efetivamente proporcionais ou desproporcionais».

Carlo Maria Martini não conseguia mais “deglutir”. Em seus últimos dias de vida não aceitou sondas, nutrição, hidratação, nada que pudesse impedir o processo natural que o levou à morte.

Para o Cardeal Elio Sgreccia, presidente emérito da Pontifícia Academia para a Vida e reconhecido pelo Papa Bento XVI como um dos maiores especialistas em Bioética da Igreja, a morte de Martini ocorreu conforme os preceitos e os cânones da ética católica. E acrescentou: «A obstinação terapêutica é recusada pela Igreja e por todos os católicos. Não é apenas desaconselhada, mas direi que é proibida, como é proibida a eutanásia. Assim como não se pode tolher a vida, não se pode prolongá-la artificialmente.» Elio Sgreccia declarou publicamente que «Se estivesse na situação de Martini, faria exatamente o que ele fez».

A Resolução do Conselho Federal de Medicina reafirma o respeito dos médicos à autonomia e reconhece, inclusive, a autonomia ampliada ou em prospectiva, que se materializa nas diretivas antecipadas de vontade, como um valor inerente à dignidade da pessoa humana a ser preservado e respeitado na relação do médico com o paciente em fase terminal.  Foi o que fez o professor Gianni Pezzoli.

Assim, para os que creem e para os que não creem, 31 de agosto de 2012 será lembrado, na transversalidade bioética, como a data que une esses dois eventos e também renova a esperança de que o Brasil se liberte de sua medieval tradição de que a única passagem para o Santo Sepulcro ainda é a Via Dolorosa.

Para esse fim, estamos cientes de que a Resolução CFM 1995/12 é apenas o começo. Mas como disse Carlo Maria Martini, «Cada mínimo progresso nesse entendimento sobre as grandes coisas simples assinala um passo adiante também no compartilhar das razões de esperança».

Que essa sua última lição teológica nos ensine a viver a morte, sempre inevitável, cada vez menos imprecisa, de maneira humanizada e digna.


* Roberto Luiz d´Avila é presidente do Conselho Federal de Medicina (CFM).

* Diaulas Costa Ribeiro é promotor de Justiça e professor universitário.

* As opiniões, comentários e abordagens incluidas nos artigos publicados nesta seção são de inteira responsabilidade de seus autores e não expressam, necessariamente, o entendimento do Conselho Federal de Medicina (CFM).

 

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