“O médico é o profissional legalmente habilitado ao exercício da medicina, capacitado para o diagnóstico nosológico (de doenças), prescrever tratamento e definir medidas específicas de prevenção ou indicação terapêutica, recuperação de saúde e reabilitação, apto a prestar cuidados e a intervir sobre o indivíduo, grupos populacionais, doentes ou saudáveis, com o objetivo de proteger, melhorar ou manter seu estado e nível de saúde”. Assim define a Resolução 2.416/2024, aprovada pelo Conselho Federal de Medicina (CFM) e publicada no Diário Oficial da União, a qual especifica, com detalhes, os atos próprios dessa categoria e delineia aspectos relativos à sua autonomia, limites, responsabilidades e juridicidade.
Pela regra em vigor, também é privativo do médico a emissão de documentos de importância jurídica e médico-legal relacionados aos atos praticados no exercício da medicina. Constam desse rol: atestados médicos de afastamento, acompanhamento, saúde e saúde ocupacional; relatórios médico circunstanciado e médico especializado; laudos médico e médico-pericial; pareceres técnicos, relatórios clínicos, solicitações de exames, resumos ou sumários de alta, entre outros. Da lista consta ainda a emissões de declarações de comparecimento e de óbito.
10 horas de debate – No texto, produzido após discussões em três sessões plenárias, com 10 horas de debates, o CFM consolida os fundamentos da prática médica no País, a partir do escopo legal em vigor, incluindo-se normas sanitárias, regulamentação de outras profissões da área da saúde e legislação nacional. Segundo o relator da Resolução 2.416/2024, Emmanuel Fortes Cavalcante, atual 1º vice-presidente do CFM, não existe o objetivo de limitar a atuação de outros profissionais da saúde, mas destacar competências previstas em lei de cada área, inclusive atribuindo-lhes a responsabilidade por intercorrências geradas.
“Os atos que fundamentam diagnóstico e prescrição (mesmo em programas de saúde pública) são privativos de médico, sendo que delegações/compartilhamentos devem estar sob sua supervisão. Não se trata de uma imposição, mas da compreensão das competências e limites definidos nas leis que regem cada profissão que atua no espectro da medicina. Ao se definir diretrizes e protocolos para a intervenção de profissões que atuam em sinergia com os médicos, não se está conferindo competência para fazer diagnóstico nosológico e as correspondentes prescrições terapêuticas, mesmo integrando uma equipe de saúde, mas apenas a capacidade de aplicar diretrizes e protocolos, com o escrutínio de sinais e sintomas para aplicar no previsto em protocolos terapêutico e nunca isoladamente, sempre integrando uma equipe de saúde, onde exige-se a presença de médico, supervisionando as ações e respondendo pelo aspecto jurídico dos atos praticados”, ressaltou o relator da norma, em sua exposição de motivos.
Emmanuel Fortes ainda qualifica aspectos intrínsecos à abordagem médica, que começa pela anamnese e exame físico, prossegue com exames complementares, diagnóstico firmado, prescrições clínicas e cirúrgicas e aplicação de recursos farmacológicos e tecnológicos. “Vale destacar que qualquer ato praticado por não formados em medicina que gerem danos sobre os quais o médico precise intervir, a partir do momento em que é procurado pelo paciente/vítima, cria o dever no médico, ou no Diretor Técnico-Médico do ambiente médico (físico ou virtual), de informar ao Conselho Regional de Medicina (CRM), sobre o ocorrido”, ressaltou.
A norma destaca ainda que, pelo Decreto nº20.931/1932, é vedado ao médico assumir responsabilidade de tratamento médico por quem não for legalmente habilitado e no Código de Ética Médica (artigo 38) de delegar atos de sua exclusiva competência a quem não é médico. Como observado pelo relator, embora todas as profissões convirjam para um saber que as torna complementares à medicina, quando atuam na área médica, nenhuma delas tem autorização legal para formular diagnósticos nosológicos, fazer prescrições relacionadas a esse diagnóstico, prognosticar dentro desse entendimento e fazer atestações e outros atos de natureza médico-legal, como ocorre com os formados em medicina.
“Nenhuma outra profissão, quer em suas leis, quer em suas diretrizes curriculares, capacita seus profissionais para cumprir esse desiderato com tamanha extensão e complexidade, daí a necessidade desta Resolução para demonstrar que não é apenas o acesso a informações sobre uso de fármacos ou técnicas que autoriza quem quer que seja a praticar os atos exclusivos dos médicos”, afirmou Emmanuel Fortes Cavalcante.
Ele explica que a nova regulação serve para a defesa da saúde dos cidadãos e dos direitos dos pacientes, razão pela qual torna-se imperiosa “a definição da atividade médica, no contexto das atividades de saúde, explicitando-se de forma objetiva o seu conteúdo e responsabilidades”. A Resolução, que define também a responsabilidade dos diretores técnicos médicos (e chefias médicas) ao delegar e compartilhar a aplicação das prescrições em ambientes médicos com as equipes de saúde, descreve os atos privativos do médico em diferentes áreas.
A anamnese para a construção da história clínica da doença, os exames físico e mental e a requisição de exames complementares, por exemplo, são atividades privativas dos médicos. O texto ressalta ainda que esses elementos “são ferramentas essenciais para a formulação de diagnósticos nosológicos e prognósticos baseado nestes diagnósticos, assim como para a prescrição de condutas terapêuticas ou de reabilitação”.
Procedimentos invasivos – A indicação e a execução de intervenção cirúrgica e a prescrição dos cuidados médicos pré e pós-operatórios, assim como a indicação da execução e execução de procedimentos invasivos, já previstas na Lei do Ato Médico, também estão na lista de exclusividade citadas pela Resolução. No campo da reabilitação, são atividades exclusivas do médico a definição de sequelas e sua abrangência e a prescrição de órteses e próteses que requeiram aferição, aplicação ou adaptação por médico.
A norma do CFM estabelece também que compete ao médico, como ato jurídico, definir a causa da morte e suas implicações na interface com a saúde pública e jurídico-forense, bem como realizar a administração dos serviços em saúde e exercer a função de diretor técnico médico dos estabelecimentos de hospitalização ou de assistência médica. Para Emmanuel Fortes Cavalcanti, é necessário explicitar, determinar e refinar o conceito de ato médico porque a atividade médica tem de ser altamente regulamentada por razões de interesse público.
“É necessário especificar expressamente o conteúdo intrínseco dos atos dos médicos, pois está em causa a defesa da vida e saúde dos cidadãos. Vale frisar que não se trata de mero interesse corporativo de defesa dos interesses dos médicos, mas sim do interesse público de não se permitir a todos os prestadores de saúde uma intromissão em atos exclusivos para os quais somente os médicos estão cabal e integralmente habilitados a executar”, avalia.
Em casos de efeitos adversos decorrentes do exercício ilegal da medicina, inclusive, o documento veda ao médico e ao diretor técnico médico deixar de notificar ao Conselho Regional de Medicina (CRM) a ciência dessas situações. A norma igualmente determina que o médico não pode emitir declaração de óbito nas situações suspeitas, sendo obrigatória a comunicação à autoridade policial para que seja realizada a competente necropsia.
Invasão de competência – Exemplos de tentativas de invasão de competências dos médicos por pessoas sem formação em medicina são comuns. Em uma simples busca na internet, é possível encontrar várias empresas oferecendo cursos online de preenchimento de PMMA em diversas partes do corpo e de peeling de fenol “profundo” para os interessados em executá-los, sem qualquer restrição profissional. Esse é mais um desdobramento da teia complexa que envolve práticas exclusivas de médicos realizados por não médicos que colocam a população numa zona de insegurança.
Em março, o CFM já havia revelado que, a cada dia, pelo menos dois casos de exercício ilegal da medicina passam a tramitar no Poder Judiciário ou nas polícias civis dos estados brasileiros. De acordo com a pesquisa coordenada pela Autarquia, entre 2012 e 2023, o País registrou 9.566 casos de crimes classificados como exercício ilegal da medicina, enquadrados no artigo 282, do Código Penal.
“Eventualmente, alguns dos acusados nesses registros em tramitação na polícia e no Judiciário podem ser egressos de cursos livres e à distância que treinam de modo irresponsável pessoas a realizarem atos invasivos que podem resultar em mortes e sequelas. É de suma importância para a sociedade a explicitação e o refinamento dos conceitos mencionados na resolução a fim de resguardar a tutela e a defesa da saúde dos brasileiros”, afirma o presidente do CFM, José Hiran Gallo.
Procedimentos invasivos – De acordo com Resolução, “entende-se por dispositivo médico invasivo aquele que penetre parcial ou totalmente no corpo, seja por um dos seus orifícios ou atravessando a pele”. Essa definição reforça o já previsto na Lei 12.842/2013, de que é atividade privativa do médico a indicação da execução e execução de procedimentos invasivos, sejam diagnósticos, terapêuticos ou estéticos, incluindo os acessos vasculares profundos, as biópsias e as endoscopias.
Os procedimentos invasivos só são permitidos aos profissionais de enfermagem no caso de aplicação de injetáveis intradérmicos, subcutâneos, intramusculares e venosos superficiais, assim como em punções de artérias superficiais, sempre mediante prescrição médica; e aos odontologistas em procedimentos invasivos exclusivamente no aparelho estomatognático, de acordo com sua lei e o disposto na Resolução CFM nº 2.373/2023 (ou sucedânea).
“Fora desse limite, a realização de procedimentos invasivos (diagnósticos, terapêuticos ou estéticos) caracterizados por inserções ou aplicações de substâncias que transpassam as camadas superficiais da pele deve ser feita exclusivamente por médicos, pois exige dos seus executores adequada capacitação técnica oferecida apenas aos graduados em medicina. Isso reduz significativamente as chances de exposição dos pacientes a efeitos deletérios”, explica o relator da resolução, afirmou o relator da Resolução.
Cursos de medicina – De acordo com a norma recém-publicada, cabe exclusivamente ao médico coordenar cursos de medicina e residências médicas, pós-graduações em medicina, e eventos organizados em medicina. O texto determina ainda vetar que profissionais não habilitados ao exercício da medicina pratiquem atos privativos de médicos em ambientes médicos, bem como permitir o ensino ou a delegação a esses profissionais de atos da exclusiva competência dos médicos.
Outro ponto estabelecido pela norma é de que compete exclusivamente ao médico exercer a função de diretor técnico médico de planos de saúde, autogestão, seguros saúde, cooperativas médicas, organizações sociais prestadoras de serviços médicos, além de outras intermediadoras da prestação de serviços médicos como cartão de desconto, plataformas de telemedicina, aplicativos que conectam pacientes a serviços de atendimento domiciliar.
Pelas regras, os médicos ainda ficam proibidos de atender requisições de exames complementares solicitados por não médicos, exceto aqueles previstos em lei e, em programas de saúde pública elaborados com a participação de médico, estes últimos limitados ao determinado nos trabalhos em equipes de saúde, mantido o veto se a requisição estiver relacionada a práticas fora deste contexto.
“Com essa Resolução buscamos reforçar o que já está definido pela legislação. Todos os pontos citados estão previstos em leis em vigor no nosso País. Por isso, se trata de uma norma que atende os requisitos legais e jurídicos e que, sobretudo, protege o médico e o paciente dos excessos cometidos por alguns indivíduos”, arrematou o presidente do CFM, José Hiran Gallo.