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Escrito por José Pedro Jorge Filho*

Nos últimos anos, a prática médica tem sofrido de uma praga terrível, fenômeno antes raro ou inexistente, agora cada vez mais comum, que chamei de A Maldição da Prótese.

Suas causas podem ser múltiplas, mas dentre elas podemos mencionar a grande distorção entre o que é pago de honorários em um ato médico e o que é remunerado aos chamados mat/med (material e medicamentos) ou a órteses e próteses. Não que isto justifique o que está acontecendo, mas ajuda a se tentar encontrar uma explicação. Acrescente-se uma relação excessivamente próxima entre alguns médicos e indústria, certos colegas sem escrúpulos, um sistema de saúde cheio de falhas que remunera bem a tecnologia mas não o ato médico, além do ” estilo de ser” corrupto que assola o país e pronto. Está trilhado o caminho para que a Maldição prospere. Vejo nela três senões graves:

1) É antiética. Prevista na resolução do CFM 1595/2000 (1) é pois considerada ilícito ético, como fica claro no Art. 1º do citado documento:

2) ” Art. 1º – Proibir a vinculação da prescrição médica ao recebimento de vantagens materiais oferecidas por agentes econômicos interessados na produção ou comercialização de produtos farmacêuticos ou equipamentos de uso na área médica.” Já em 2001, portanto apenas um ano após sua publicação, Oselka (2) em artigo de Bioética, suspeitava do real cumprimento desta resolução : ” … relevante e atual. Não nos parece, porém, que esteja sendo respeitada integralmente” .

O novo Código de Ética que está sendo gestado já sinaliza uma abordagem mais clara e severa para estes casos.

2) É imoral. Seleciona pacientes de forma espúria. Um paciente que está numa Unidade de Pronto Atendimento e que dá o “azar” de ter uma pneumonia grave vai ficar lá mesmo, na UPA, com poucas chances de conseguir uma vaga hospitalar para internar-se. Agora, se ele dá a ” sorte ” de ter uma sindrome coronariana aguda que vai demandar um implante de endoprótese coronariana, o stent, este paciente consegue a vaga rapidinho. Esta seleção de pacientes é sim imoral, e lembra um colega de profissão tristemente célebre, o Dr Josef Mengele, que escolhia quem ia viver e quem ia morrer, baseado no que o sujeito podia trazer de utilidade para a instituição em que trabalhava.

3) É ilegal. Para pagar o chamado “percento”, “chocolate”, CPF (comissão por fora) ou seja lá que nome se dê para esta polpuda gorjeta, é claro que muitas indústrias não ficam no prejuizo. Simplesmente superfaturam as notas fiscais e para não correrem o risco de a coisa aparecer na contabilidade pagam em cash , no famoso envelope pardo, o chamado ” l´argent sous la table” dos franceses ou o kickback dos americanos.

Estes últimos alíás definem o termo kickback à perfeição como ” um termo vulgar para descrever o pagamento de algo de valor para outro indivíduo com o objetivo de persuadir ou influenciar a sua decisão em certas situações” (3) .Permitam-me reproduzir um outro comentário, este em inglês:

” Generally speaking, kickbacks are illegal because they are made without the customer’s knowledge.” .Ou seja o paciente, que é o principal interessado em qualquer procedimento médico, nem fica sabendo desta transação feita pela porta dos fundos. Aliás, nos Estados Unidos a coisa já evoluiu de tal forma (4) (5) que foi criada uma lei específica para estes casos, pelo menos quando envolvem recursos públicos, e que pune os envolvidos (corrupto e corruptor) com multa de 25 mil dólares e prisão por até cinco anos (6) . Já existem até mesmo anúncios de escritórios de advocacia com setores especializados em defender profissionais de saúde envolvidos nesta prática (7) .

Este fenômeno atinge um potencial de perversão assustador e proporcional aos valores envolvidos, atingindo o seu exemplo máximo em endopróteses aórticas e cardiodesfibriladores implantáveis, dentre outros.

E em nosso país? Bom, como veremos a seguir, o que não é bom para os Estados Unidos também não é bom para o Brasil.

Este “estilo profissional” já chegou por aqui como pode ser observado em artigo esclarecedor da Associação Médica de Minas Gerais (8) e na notícia de operação da Polícia Federal (que tem o nome constrangedor de Hipócrates, que aliás deve estar se contorcendo na tumba) em que cardiologistas são acusados. Teria havido benefício ilegal no fornecimento de materiais utilizados nas cirurgias cardiovasculares dos pacientes atendidos pelo Sistema Único de Saúde (SUS) Segundo a PF, eles eram “sócios de fato de empresas fornecedoras de produtos utilizados na área hospitalar”, como medicamentos e materiais cirúrgicos. Como eram também os requisitantes dos produtos que vendiam, “dominavam o mercado em prejuízo da concorrência e do erário público”. As empresas estariam em nome de funcionários.

(9) Quais seriam os remédios para esta praga?

1) Quanto ao aspecto ético, esperam-se do CFM ações para fiscalizar o cumprimento da resolução 1595, e também a publicação do novo Código de Ética Médica.

2) Quanto ao aspecto moral, bem, diz-se que a ética é individual e a moral é coletiva. Aos órgãos de regulação da saúde, públicos e privados, espera-se zelar pela não seleção de pacientes graves que necessitam internação.

3) Quanto ao aspecto legal, este fica a cargo das várias instâncias do poder público envolvidas, e do ordenamento jurídico existente. E por último e mais importante, cabe aos sistemas de saúde, públicos e privados, rever as distorções atuais e valorizar este ato médico maior, que é a consulta médica com todo o seu contexto de uma boa relação médico-paciente e o raciocínio clínico envolvido. Ou, no caso dos cirurgiões, valorizar a sua habilidade e destreza, conseguidas após exaustivo treinamento. Assim seriam reconhecidos os esforços da maioria dos colegas honestos, que lutam para praticar a boa medicina no seu dia a dia. E seria reservado aos dispositivos de alta tecnologia um papel também importante, mas secundário, e não o começo, meio e fim de muitos atos médicos. Só assim ficaremos livres desta praga terrível, que ameaça desfigurar ou mesmo destruir a boa prática médica, a Maldição da Prótese.  

Referências:

1) Resolução CFM nº 1595/2000. Publicada no Diário Oficial da União de 22/05/00, pg 18, secção I.

2) Oselka, G. Os Médicos e a Indústria Farmacêutica e de Equipamentos. Rev. Assoc. Med. Bras. vol.47 no.3 São Paulo Jul/Set. 2001.

3) http://investor.cisco.com/glossary acessado em 26/10/2008.

4) Medtronic Inc. will pay $40 million to settle allegations it gave kickbacks. News, Reuters Health Information, July 2006

5) U.S. government examining doctor kickbacks for medical devices. The New York Times Monday, March 24, 2008

6) The Medicare and Medicaid Patient Protection Act of 1987 (” The AntiKickback Statute “). (42 U.S.C. 1320a-7b)

7) http://healthcarefraud.mlhorwitzlaw.com/PracticeAreas/Referral-Kickbacks.asp acessado em 27/10/2008.

8) Os Médicos estão nas Mãos dos Laboratórios? Jornal da Associação Médica de Minas Gerais, v. 110, Abr/Mai 2008.

9) PF prende três médicos do Hospital das Clínicas de Uberlândia. Jornal O Estado de São Paulo, 08/10/2008.

* É cardiologista.

* As opiniões, comentários e abordagens incluidas nos artigos publicados nesta seção são de inteira responsabilidade de seus autores e não expressam, necessariamente, o entendimento do Conselho Federal de Medicina (CFM).


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