Escrito por Paulo Saraceni Neto*
A proposta do governo federal de trazer milhares de médicos estrangeiros para “desatar o nó” da saúde brasileira caiu como bomba no meio médico, no entanto, já é o derradeiro ato de um plano para desconstruir e desprestigiar a Medicina brasileira. A vinda de médicos cubanos é somente a cereja do bolo. Permitam-me fazer uma retrospectiva, e vocês me darão razão.
Era o ano de 2000, estava às vésperas de concluir o Ensino Médio, e havia me decidido por prestar o vestibular de Medicina. Naquele ano, o Brasil possuía 107 cursos de Medicina autorizados. Em virtude da não concordância de meus pais em bancar os custos de uma faculdade privada, minhas opções se restringiam a pouco mais de 60 cursos. Com muito estudo e dedicação, fui aprovado na minha querida e saudosa UFMS.
Durante os anos de faculdade, em atendimentos no Hospital Universitário e em viagens ao interior do Estado, pude perceber o grau de sucateamento da saúde brasileira, pacientes no corredor, falta de equipamentos, superlotação, condições precárias de higiene.
Através das atividades do Centro Acadêmico participei de inúmeros protestos na rua, audiência públicas na Assembleia Legislativa do MS, reunião com políticos, ações sociais, entre outros. Enquanto nossas demandas eram relativizadas por políticos e os problemas jogados para debaixo do tapete, um mercado de milhões de reais se beneficiava pela abertura indiscriminada de novos cursos de Medicina. O ano era 2003, e as antes 107 faculdades, agora já somavam 138. Os conselhos de Medicina já alertavam para os grandes danos que esta abertura indiscriminada de escolas médicas poderia causar. A Folha de S.Paulo na época em um dos seus editoriais relatou:
“MORATÓRIA NA SAÚDE
Merece apoio a campanha lançada pelo Conselho Regional de Medicina de São Paulo (Cremesp) que pede uma moratória na abertura de novos cursos de medicina. São também interesses corporativos que motivam as ações do conselho. O surgimento de mais médicos no mercado tende a acirrar a concorrência e a depreciar os salários. Mas, neste caso, não há como deixar de reconhecer que as conveniências da classe coincidem com as necessidades da sociedade.
O Brasil já tem mais médicos do que o necessário. A Organização Mundial da Saúde recomenda que exista um médico para cada grupo de mil habitantes. O país conta hoje com um profissional para cada 606 pessoas. No Estado de São Paulo, o índice cai para 443 e, na sua capital, para 264. O problema está na distribuição geográfica dos médicos. Desequilíbrios se dão em nível nacional (há carência de profissionais na região Norte, por exemplo) e local (faltam médicos inclusive nas periferias da capital paulista). Hoje se formam médicos no Estado de São Paulo num ritmo duas vezes superior ao do crescimento populacional.
Nos últimos anos, assistiu-se à abertura desenfreada de novas escolas médicas, em parte devido ao poderoso lobby das universidades privadas. Só em 2002, o MEC autorizou a abertura de oito novos cursos. Infelizmente, nem todas as instituições se pautam pela excelência educacional. O resultado tem sido a formação de maus profissionais, o que coloca em risco a saúde da população.
Nos últimos anos, assistiu-se à abertura desenfreada de novas escolas médicas, em parte devido ao poderoso lobby das universidades privadas. Só em 2002, o MEC autorizou a abertura de oito novos cursos. Infelizmente, nem todas as instituições se pautam pela excelência educacional. O resultado tem sido a formação de maus profissionais, o que coloca em risco a saúde da população.
Quando estão em jogo a formação e a distribuição regional de médicos, a intervenção do Estado é necessária, seja para preservar a qualidade dos cursos, seja para induzir um maior equilíbrio na disposição dos profissionais de saúde.
A moratória proposta pelo Cremesp não pode, é claro, ser eterna. Ela deve valer até que a lei fixe parâmetros de necessidade social e exigências qualitativas para a abertura de novos cursos de medicina.”
Folha de S. Paulo , 02 de maio de 2003.
Folha de S. Paulo , 02 de maio de 2003.
O então, acadêmico de Medicina, que vos escreve, se manifestou para uma realidade que incomodava a todos que prezavam pela boa qualidade no atendimento médico:
Saúde
“Excelente o editorial “Moratória na saúde” (Opinião, 2/5). Já era hora de uma mobilização com o intuito de impedir a abertura de novos cursos de medicina no país. O que vemos atualmente é o crescente número dessas instituições caça-níqueis, que obtêm a autorização do MEC e abrem cursos de medicina sem a estrutura e o quadro docente necessários à formação de um bom profissional.”
Paulo Saraceni Neto, membro do Centro Acadêmico de Medicina Dr. Günter Hans, da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (Campo Grande, MS)
Folha de S. Paulo, 04 de Maio de 2003. (Painel do Leitor)
Apesar dos alertas, a realidade não mudou. Passou a graduação e veio a residência. Os problemas persistiram os mesmos. Faltam luvas, medicamentos, macas, leitos, higiene.
As escolas médicas, no entanto, se multiplicaram. Hoje, 13 anos depois, são 201 escolas médicas. O Brasil só tem menos faculdades de Medicina do que a Índia, que possui 5 vezes a nossa população. A China possui 150. Os Estados Unidos 135.
Não preciso nem falar que a qualidade do atendimento despencou, os casos de erro médico dispararam e a medicina caiu em descrédito. O paciente passou a ver o médico com desconfiança, perdeu-se a humanização, e a relação médico-paciente sucumbiu.
O CFM, na tentativa de garantir a qualidade mínima dos egressos, tentou implantar o exame nacional para os médicos. Porém, esta tentativa foi sistematicamente boicotada pelos Ministérios da Educação e da Saúde.
O governo pensou que saturando o mercado, acharia facilmente mão de obra que se sujeitasse a enfrentar a total falta de estrutura do SUS no interior do país, que é ainda pior que o retrato dos HU’s. A falta de estrutura mínima (medicamentos, equipamentos, recursos humanos), a ausência de um plano de carreira, os calotes das prefeituras e o medo de processos éticos e judiciais, fez com que os novos médicos corressem para as capitais.
A proposta de trazer médicos do exterior sem a Revalidação do diploma, encontra defensores que argumentam que a maioria dos médicos formados no Brasil, talvez não conseguisse a aprovação no exame Revalida. Provavelmente eles têm razão. No entanto, não podemos justificar um erro com outro.
É preciso urgentemente criar o exame nacional do CFM para os médicos egressos das faculdades brasileiras, bem como, estruturar o exame Revalida, para que garanta os requisitos mínimos ao profissional estrangeiro que aqui queira atuar.
Além de exigir a devida revalidação de diploma dos médicos estrangeiros, a classe médica deve lutar pelo fechamento das faculdades de medicina sem qualidade e exigir a criação do exame nacional para médicos aqui formados. Somente com a melhora na qualidade da Medicina, com um atendimento de excelência, humano e profissional que iremos resgatar a credibilidade de outrora.
* Graduado em Medicina pela Universidade Federal de Mato Grosso do Sul – Campo Grande/MS. Concluiu Residência Médica em Otorrinolaringologia pela Universidade Federal de São Paulo / Escola Paulista de Medicina (2012). Possui título de Especialista da Sociedade Brasileira de Otorrinolaringologia e Cirurgia Cérvico-Facial – ABORLCCF.
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