Escrito por Carlos Marden Cabral Coutinho*
No dia 08 de julho de 2013, o Governo Federal (por meio da Medida Provisória n° 621) lançou aquilo que chamou de Programa “Mais Médicos”, uma suposta resposta aos clamores da população quanto à precariedade do Sistema Único de Saúde – SUS. Em resumo, a proposta do Governo Federal apresenta as seguintes medidas: a) abertura de 10 mil vagas de médico no interior, mediante remuneração de R$ 10 mil; b) aumento do curso de medicina em 02 anos, os quais devem dedicados a trabalho no Sistema Único de Saúde na área de atenção básica; c) aumento da oferta de aproximadamente 11,5 mil vagas nos cursos de medicina nos próximos 04 anos; e d) contratação de médicos estrangeiros para suprir as vagas que não forem do interesse dos médicos brasileiros.
A coisa toda não passa de um castelo de cartas, um conjunto incoerente de medidas paliativas com o evidente objetivo de ganhar tempo até a (re)eleição de 2014, como aconteceu com as natimortas propostas referentes a uma suposta constituinte exclusiva ou a um plebiscito. Todos aqueles que são brasileiros (e, principalmente, aqueles que, como eu, foram às ruas) sabem que o que a população precisa é de um serviço de saúde de qualidade, o que claramente não será atingido com esse programa lançado ontem. Não sou médico (sou “advogado”) e não pretendo esgotar o assunto, mas vou tentar explicar o que está acontecendo, já que a farsa me parece elementar até para aqueles cuja formação na área da saúde se resume ao bom senso somado às aulas de biologia no ensino médio. Para tanto, vamos por pontos.
Em primeiro lugar, o problema do acesso da população carente (e interiorana) ao direito à saúde não será resolvido com a contratação de 10 mil médicos para trabalhar nos rincões do país, ainda que se lhes pague a quantia prometida. O problema do Programa de Saúde da Família não é salarial, mas sim de estrutura! Coloque no Google a expressão “quanto ganha um médico no PSF” e confira por si mesmo. Em Londrina (LONDRINA! Deixa eu repetir: LONDRINA!!!) os médicos recusam mais do que isso. O que leva o Governo Federal a pensar que o salário do Programa “Mais Médicos” é atrativo? Respondo: NADA!!! Trata-se de mero jogo de cena, no qual ele finge que ofereceu oportunidades que previamente sabe que serão recusadas, de modo a transferir a responsabilidade para os próprios médicos. Por outro lado: se a cidade paga bem, por que os médicos não se dispõem a trabalhar lá? Serão eles seres diferenciados, que baseiam suas condutas por critérios vocacionais e sem pensar no dinheiro? Teríamos que ser bastante tolos para pensar que sim! Se determinadas cidades não são atrativas para os médicos brasileiros, não é por pagarem mal ou porque eles não se importem com dinheiro, mas sim porque as condições de trabalho oferecidas são sofríveis. Só para se ter uma idéia, vejam se existe dificuldade para contratar juiz ou promotor para as mesmas cidades, às vezes ganhando até menos. Então… Para bom entendedor…
O segundo ponto do programa é de um despropósito tão descarado, que eu tenho dificuldade até de saber por onde abordar a coisa! Parafraseando um ex-professor meu, é um absurdo esférico: por onde quer que você olhe, a coisa não se sustenta. Em primeiro lugar, qual o sentido de se alterar compulsoriamente o programa dos cursos de medicina, se o modelo atual é plenamente funcional? Para quem não sabe, um médico especializado com quem você se consulta percorre (em regra) a seguinte via crucis até sentar na sua frente e se declarar sei-lá-o-quê: 06 anos de faculdade de medicina (sendo os 02 últimos de internato – época em que se estuda a prática dos diversos campos da profissão), 02 anos de uma residência genérica (como pediatria ou clínica médica) e 02 anos de uma residência especializada (como endocrinologia ou pneumologia). Em resumo: são 10 anos de estudo, dos quais 02 são de internato (realizado de graça) e 04 são de residência (realizada mediante uma remuneração de R$ 2.384,82 com uma carga de 60 horas semanais). Sendo assim, no modelo atual, se paga paga R$ 114.471,36 ao médico e ele trabalha efetivamente 72 meses em atividade prática! Em outras palavras, sob o argumento (plausível) de que se trata de ensino, pega-se um profissional que já teve toda a formação teórica e se explora o seu trabalho por 06 anos (dos quais 04 com carga horária de 60 horas semanais!), mediante uma remuneração média de R$ 1.589,88. A proposta genial da Dilma é a seguinte: sem qualquer motivo razoável (já que o modelo atual funciona), exigir que os médicos trabalhem mais dois anos quase de graça (vez que haverá fixação de uma bolsa, certamente com valor menor do que o da residência). Olha, se isso não for uma medida inconstitucional e autoritária, decorrente exclusivamente de uma mentalidade esquerdista que acredita que o indivíduo deve existir em função da sociedade, então eu realmente não sei o que possa ser… Pense assim: será que o mundo não “seria melhor” se todos os estudantes da sua área de formação específica também trabalhassem de graça por dois anos? Pois é…
Já se cogita estender a medida para outros profissionais da área da saúde e logo todo estudante universitário vai ter que trabalhar para o Estado durante 02 (dois) anos mediante uma remuneração indigna. Aqui, inclusive, tem outro detalhe relevante, qual seja o de que a medida não se limita apenas aos cursos das Universidades Federais! Uma vez que a Medida Provisória n° 621 alterou o próprio programa dos cursos de medicina, mesmo aqueles alunos que estudaram em faculdades privadas (certamente a maioria deles em 2015) terão que se submeter aos dois anos no Sistema Único de Saúde – SUS. Como conceber que uma medida dessa seja implementada de maneira autoritária, sem qualquer discussão prévia com a sociedade e com a classe médica? Admitir que tal medida prospere é submeter o ensino universitário ao bel prazer do Governo Federal, que passará a moldar os cursos conforme a sua convicção, se valendo dos programas para atingir seu objetivos políticos. Simplesmente inadmissível…
O terceiro ponto é aquele referente ao aumento significativo de vagas nos cursos de medicina do país. Sinceramente, qual a possibilidade de uma medida assoberbada dessas dar certo? Sério… Todo mundo sabe que medicina é um curso que depende de uma estrutura bastante complexa para que possa ser de qualidade, tanto que talvez seja o curso para o qual se fazem mais exigências para a criação de novas vagas. Isto posto, como é que, de repente, 11,5 mil alunos a mais vão ingressar na estrutura atualmente existente? Sim, porque, do alto da minha inocência, estou supondo que os hospitais não vão surgir num passe de mágica, né? Ora, só existe uma resposta lógica, qual seja a de que o Ministério da Educação vai reduzir significativamente as exigências para a abertura de novas vagas nos cursos de medicina pelo país, especialmente nas faculdades particulares! O solução do Governo Federal, portanto, consiste em aumentar a oferta de médicos com má formação! Aqui não se trata de especulação, todo mundo sabe o que aconteceu com o nível dos profissionais nos casos em que houve expansão acelerada e exagerada de vagas, sendo o curso de direito o exemplo mais emblemático. E olhe que se tratava de um curso no qual se exige uma estrutura mínima para um funcionamento de qualidade! O que virá na seqüência? Uma “prova da OAB” pra evitar que médicos despreparados causem danos irreversíveis à saúde das pessoas? Se sim, então o plano do Governo Federal tem um viés perverso, na medida em que pretende permitir que os médicos estrangeiros contornem a avaliação, ao mesmo tempo em que nos proporciona uma geração de médicos que precisarão se submeter a ela! Parabéns, Dilma…
Por fim, falemos da “importação” de médicos estrangeiros, começando por destacar que não é proibido que qualquer pessoa formada em medicina no exterior exerça a atividade médica no Brasil. Para tanto, basta que ela revalide o seu diploma, em uma das universidades públicas competentes para tanto. No caso específico dos médicos, tal revalidação é condicionada à aprovação ao Exame Nacional de Revalidação de Diplomas Médicos – REVALIDA, obrigação que continuará a existir para os médicos formados no estrangeiro, com exceção daqueles que se dispuserem a trabalhar no Programa “Mais Médicos”, que serão dispensados de avaliação. Vejam bem: não se trata de que os médicos estrangeiros serão submetidos a uma prova mais simples, mas sim de que eles não serão submetidos a prova nenhuma. Nesse ponto, a Medida Provisória n° 621 é absolutamente clara, em seu artigo 10, §3°, ao dizer que “a declaração de participação do médico intercambista no Projeto Mais Médicos para o Brasil, fornecida pela coordenação do programa, é condição necessária e suficiente para a expedição de registro provisório pelos Conselhos Regionais de Medicina”. Ou seja, a solução do Governo Federal para melhorar a qualidade da saúde é permitir que médicos formados no exterior exerçam a medicina no Brasil, sem que se avalie a qualidade da formação deles.. É isso! Vou comprar mantimentos, me trancar em casa e esperar pelo pior…
Por tudo isso, fica evidente não apenas que a presidenta Dilma está se valendo de uma tentativa desesperada de recuperar a sua popularidade (com vistas a manter viva a esperança da reeleição no ano que vem), mas também que o Governo Federal não tem a menor pretensão de resolver em definitivo o problema da saúde no Brasil! Com o intuito de jogar pra torcida, o Programa “Mais Médicos” se propõe a uma série de absurdos: a) mascarar o fato de que a falta de condições de trabalho é a principal causa da falta de médicos no Programa de Saúde da Família – PSF; b) criar um serviço compulsório gratuito de 02 anos para os médicos, sem que isso tenha qualquer valor pedagógico comprovado; c) promover o declínio da qualidade dos cursos de medicina, mediante a oferta súbita de vagas sem o aumento correspondente de estrutura; e d) permitir que uma série de estrangeiros despreparados (como mostram os resultados das últimas edições do Exame Nacional de Revalidação de Diplomas Médicos – REVALIDA) exerça a medicina no país. De quebra, a cereja do bolo: vai intervir no mercado para promover a desvalorização de uma das classes profissionais que mais investe em formação e que mais tem relevância para a sociedade! Percebam a lógica nefasta da coisa: em vez de valorizar os professores, elevando-os ao nível dos médicos; a proposta é desvalorizar os médicos… Genial! Só que ao contrário…
Por fim, seria eu um cínico, se trouxesse toda essa carga de críticas e não apresentasse um modelo que entendo adequado! Fá-lo-ei, pois… O problema da falta de médicos no interior poderia provavelmente ser mitigado se lhes fosse dispensado um tratamento digno em relação à segurança com a qual trabalham, pois atualmente os médicos que atuam no Programa de Saúde da Família – PSF não têm qualquer vínculo sólido com o Estado, restando à mercê do governante municipal da vez (responsável pela administração das verbas do programa). Ora, se o Programa de Saúde da Família – PSF veio para ficar, porque não criar uma carreira própria, na qual os médicos recebam um salário razoável, mas tenham uma situação protegida contra as intempéries locais? Esse assunto já é discutido dentro da própria classe médica e o que falta é vontade política para amadurecer a questão de uma forma que atende ao interesse dos envolvidos. Tal organização, entretanto, não servirá de nada sem estrutura! Não adianta desembarcar um caminhão de pedreiros em determinado local, se o material da obra não veio previamente… A solução pro Programa de Saúde da Família – PSF passa, então, necessariamente, por um investimento pesado em estrutura e pela organização da carreira médica pertinente! Não estou inventando a roda aqui, isso é falado há anos, feijão com arroz mesmo… Infelizmente, tem gente que nunca cozinhou e quer oferecer comida sofisticada para impressionar os convidados!
Claro que é preciso de dinheiro (e muito!) para tanto! Pois bem… Há 20 anos, existe no Brasil uma coisa que se chama desvinculação das receitas da União – DRU e que permite que o Governo Federal gaste 20% do dinheiro que é arrecadado para a seguridade social. Trata-se de arrecadação vinculada a 03 áreas (saúde, previdência social e assistência social) e que acaba sendo desvinculada, ou seja, não é gasta nas áreas específicas para as quais se realiza a tributação. Agora, sabem quanto isso significa por ano? Façam o seguinte: digitem vocês mesmos no Google a seguinte pesquisa “aprovada prorrogação da DRU e bilhões” e caiam pra trás! Pronto, é isso mesmo que vocês leram aí… A expectativa para 2013 é de que 62 bilhões de reais sejam objeto de desvinculação, ou seja, todo esse dinheiro é arrecadado, deveria ser destinado à saúde e é acumulado pelo Governo Federal. Eis então a minha sugestão: vamos colocar em pauta que sejam investidos em saúde os recursos que atualmente são objeto de desvinculação das receitas da União – DRU! Não precisa criar novo tributo nem aumentar a alíquota dos existentes, basta gastar o dinheiro arrecadado no local certo, investir em saúde o dinheiro arrecadado para tanto… Que tal? O quê? Onde e como gastar? Bom, aí eu deixo para o pessoal da área da saúde discutir e decidir! Para um alienígena, acho que já falei até demais…
* É procurador federal, professor universitário, doutorando em Direito Processual da PUC Minas.
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