Escrito por Emilio César Zilli*
O cargo de Diretor de Qualidade Assistencial da SBC me transporta a palestras, pelos vários rincões deste país. Ao término das mesmas, ainda me surpreendo com o conteúdo das dúvidas e discussões. Se deixarmos de lado as particularidades locais e as percepções regionais, o problema, no fundo, é sempre o mesmo: como exercer a melhor cardiologia sem investimentos estruturais, sem remuneração adequada, sem reconhecimento profissional?
Recentemente, na bela cidade de Goiânia, em um simpósio sobre doença coronariana aguda, que nada deveu aos centros mais adiantados em ciência cardiovascular deste Brasil, não foi diferente. Convidado para discorrer sobre Ética, Responsabilidade, Custeio e Frustrações no atendimento das Urgências Cardiovasculares, quando terminei de responder às inúmeras questões que se sucederam, tive uma vez mais (como sempre…) a impressão de que muito deixara de falar, de debater, ou mesmo, quem sabe, de tentar corrigir. E agora, neste avião em que retorno à minha casa, esta impressão se transforma em certeza! Os semblantes preocupados e esperançosos daqueles colegas se sucedem vertiginosos em minha lembrança, e temo tê-los frustrado mais ainda com minhas vagas respostas. Mas ao mesmo tempo em que recordo e me penitencio, uma idéia se materializa fortemente e desenha contornos muito nítidos à minha frente. Uma idéia que não é mais nova! E que há longo tempo evolui, criando forma em minha mente.
Estamos sempre preocupados na Sociedade Brasileira de Cardiologia em qualificar os cardiologistas! Para nós, como sociedade científica de especialidade, a formação profissional sempre foi o horizonte mais almejado e razão de todo esforço acadêmico. Só desta maneira, entendíamos, se poderia prestar o melhor atendimento possível aos milhões de brasileiros com doença cardíaca. E assim, passamos a exigir a obtenção do título de especialista em cardiologia, através de critérios acadêmicos extremamente rígidos e à revalidação deste título a cada cinco anos através de outros tantos critérios. Entretanto, apesar de enormes esforços, percebemos que nem só de excelência médica, é feito um bom atendimento. Era também preciso qualificar os serviços responsáveis por consultas, exames e internações para que a excelência fosse alcançada e, desta forma, lançamos as bases de um ambicioso programa de acreditação hospitalar em cardiologia, que categoriza por excelência serviços e hospitais. Ainda assim, não conseguimos atingir o desejável em qualidade assistencial! Um enorme contingente de pacientes desassistidos ou mal assistidos e a grande maioria dos profissionais ainda padecem, vítimas de um sistema de saúde que não consegue cumprir seu papel constitucional.
Mas por quê? Os concursos públicos se sucedem, os profissionais são mais qualificados. Vários estados e prefeituras anunciam midiaticamente novas contratações para a saúde, novas formas de gestão, melhores salários (?), mas logo as manchetes jornalísticas se transformam e o que era esperança vira uma vez mais desilusão! E assim, de frustração em frustração, vamos atropelando o exercício da medicina e, às vezes, até esquecendo de outras pequenas mas importantes vitórias.
Retornando à minha ideia, eu penso que é hora de ampliarmos um pouco mais a nossa atuação. Afinal, quando se edita qualquer concurso (público ou privado) para a contratação de cardiologistas, exige-se uma série de pré-requisitos para se efetivar esta inscrição: registro no CRM, título de residência, título de especialista, currículos, enfim, um mundo de exigências, algumas cabíveis, outras nem tanto. Mas e do outro lado? O que é exigido da instituição que promove este concurso? Deveria ser no mínimo obrigatório, para não dizer ético e responsável, que as Sociedades de Especialidade, o Conselho Federal de Medicina e até o Ministério Público exigissem destas instituições, sejam públicas, autárquicas ou privadas, as características mínimas de condições para propiciar aos profissionais e pacientes um atendimento seguro e de qualidade. E mais: estas avaliações não se limitariam ao momento do concurso, seriam também periódicas. Da mesma forma, como já citei, fazemos com nossos profissionais. E a qualquer sinal de insuficiência de gestão, imediatamente propostas seriam efetivadas para a correção. Tudo dentro da ética, da técnica e do bem maior da preservação da saúde.
O que os pacientes precisam saber é que apesar de um sem número de escolas de medicina autorizadas e incompetentes, apesar de um salário indigno, apesar das condições de trabalho desumanas, o exercício da medicina pelos bons profissionais e entidades tem melhorado. E se isto não se converte em melhor atendimento público; deve-se principalmente à falta de políticas realistas e não partidárias. Será que já não é hora de avaliarmos com os mesmos critérios as Secretarias de Saúde, Hospitais, Prefeituras, enfim, qualquer instituição que empregue profissionais da saúde, de forma a só permitir a contratação desde que haja condições seguras para o exercício profissional? Isto não seria um grande salto na Qualidade?
Isto não é difícil de executar! Nossos programas de qualidade já possuem “expertise” suficiente para esta análise. O importante é que as sociedades de especialidade, a população assistida, os profissionais envolvidos e as autoridades de saúde, em todos os níveis de gestão, tenham a determinação política e administrativa para tal. Teríamos até um bom “slogan”: “Por trás de bons profissionais há sempre uma boa gestão“. Talvez assim, eu tenha no futuro menos coisas do que me arrepender por não ter falado!
* É diretor de Qualidade Assistencial da Sociedade Brasileira de Cardiologia.
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