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Escrito por José Cleber do Nascimento Costa *

 

Este artigo poderia ter vários títulos, como “A mumificação do paciente do SUS”, “A passividade do paciente público”, “O perfil do paciente e como mudar para melhor utilização da saúde pública”. Preferi o emprego da palavra “senso comum” no título por acreditar que este termo carrega uma negativa inconsciente, além de trazer um mecanismo que emperra a mudança para melhor.

Nosso sistema público de saúde faz mais ou menos todos acessarem seus serviços, não sem antes exaurir a psique dos usuários. Não é o tipo de lugar que alguém vai para beber da fonte da generosidade humana, do ideal de profissionais dedicados e de uma estrutura repleta de recursos modernos e completamente a disposição de quem paga impostos.

Assim, seguir as instruções de quem esteja com o poder na hora da verdade, seja um vigilante, uma recepcionista, um maqueiro, um enfermeiro ou um médico é, como regra geral, indispensável para, de maneira passiva, receber seu atendimento, eis que se reclamar pode se deparar com a má vontade de um funcionário estatutário estável — que não o agredirá, mas será tão negligente quanto possa, desde que sua carreira não seja colocada em risco.


Desta forma, o paciente é, sem explicitar e sem tomar consciência, induzido a não levar para o lado pessoal e quem leva a culpa é o “sistema”, o “governo”, a “política de saúde”, a “ausência de recursos”, a “gestão” – tudo fim para que ele se sinta ainda mais impotente em reclamar daquilo que lhe é de direito.  O mal parece estar longe e inalcançável na hora do atendimento e nada pode ser feito. Este senso comum, que torna o paciente um ser robótico e paralisado, é a essência da inteligência coletiva e está profundamente enraizado em nossos sistemas social, legal, filosófico, político e de saúde.


Ao longo da sua vida de brasileiro, o paciente se adaptou a essa situação diminutiva da sua dignidade, como que fazendo parte de um conjunto pouco organizado de fatos, observações, experiências, revelações e gotas de sabedoria adquiridas na sua vida. Esse emaranhado de experiências e práticas recebidas, crenças aceitas, julgamentos habituais e emoções contidas faz parte do seu perfil de usuário. Ele passa a deter um conhecimento automatizado, do qual não tem consciência, mas que o leva a fazer parte de situações e processos involuntários, como um ator que esquece o texto, mas sempre responde por impulsos naturais e acaba ficando no palco.


Não importa se ele está indo tomar uma vacina, passar por uma consulta, fazer um exame, se está adentrando uma emergência, doando sangue, se internando eletivamente: há um estado de conformação de que o serviço não é bom por culpa de ninguém, é assim mesmo e pronto. A conformação toma mais conta do seu cérebro do que a conformidade de serviços bem prestados.


Do outro lado do palco, alguns gestores públicos atuam como planejadores centralizadores: pensam em metas por classes populacionais, máquinas de exames, estatísticas de epidemiologia, regionalização da saúde, universalidade, referência e contrarreferência, etc.; são responsáveis pelo trabalho que acreditam exigir uma previsão do comportamento de pessoas, grupos e doenças e passam a organizar recursos e estruturas, mas de forma a fragmentar a responsabilidade final, que sempre estará em um ponto fora do seu controle. E, a exemplo do pensamento do paciente, qualquer coisa que ofereçam ao doente é melhor do que nada; como um favor que estão fazendo, é sua contribuição possível frente ao caos reinante; de tal sorte que os dois lados, pacientes e gestores de saúde, acreditam no papel que interpretam — um de “melhor isto do que nada” e o outro de “fazer o que pode” —, mas ambos estão insatisfeitos com o resultado, a exemplo da sociedade que formam, participam e vivem até o fim dos seus dias.


Compreendendo as características da nossa cultura, esses comportamentos intrigantes começam a parecer inteiramente lógicos e normais. Quando se acredita ser uma questão de senso comum, as pessoas acreditam com certeza absoluta e até ficam perplexas apenas com o fato de outras pessoas discordarem.


Mudar o sistema de atendimento público de descaso para agilidade e qualidade? Impossível! Só falta mandar internar o dono desta ideia, pois com certeza é caso psiquiátrico, uma vez que qualidade não combina com todos os tipos de desculpa que temos prontas: falta de recursos, formação inadequada, utilização incorreta dos serviços médicos, dentre outras. E aí está o ciclo viciante, maléfico, de pontos escuros e cegos que não permite a correção para a entrega de uma saúde acessível, com qualidade e suficientemente financiada pelos altos impostos arrecadados pelo país.


Se a unanimidade é isenta de inteligência, o senso comum que pode nos levar a um cacoete comportamental ao longo de uma existência nos faz crer que este senso é paralisante; o senso comum não nos permite enxergar uma nova fronteira, que na maioria das vezes está diante dos nossos olhos, que depende muito mais de ações individuais do que de planejamento centralizado por mentes sábias e diferenciadas. Alertar para a consciência do gestor de recurso público e do usuário do sistema de saúde talvez seja a maior contribuição que possamos dar para o nosso país neste momento. Acertos e erros ocorrem o tempo todo em função do senso comum.


Nosso personagem, o paciente, foi condicionado ao longo de muitos anos a receber péssimo atendimento e aceitá-lo como normal. A imprensa, de forma também inconsciente, ajuda para a formação desse perfil brasileiro, pois prestamos menos atenção do que deveríamos nas coisas que não acontecem. Mas também prestamos mais atenção que a maioria nas coisas que acontecem. A sociedade percebe quando uma criança morre em uma tarde ensolarada em um hospital por se aplicar uma dipirona em alguém alérgico, mas não percebe quantas crianças são salvas por dia. Com efeito, então, se meu filho foi atendido e não morreu: “Puxa, fantástico, excelente; mesmo com a recepcionista sendo grosseira e o médico não ter explicado o diagnóstico… bem, ao menos meu filho não foi a óbito”. Esta inversão de valores leva a um ciclo histórico de pessoas que procuram atendimento a aceitarem qualquer tipo de tratamento.


Enfim, não podemos saber quando o filme da nossa vida vai chegar a sua cena final, mas enquanto profissionais de saúde podemos fugir da inércia do senso comum e nos esforçarmos para que a população exerça um efetivo controle social a partir das ações de cada individuo, da conscientização que cada servidor deve ter da sua obrigação de tratar da melhor maneira e, por fim, do paciente efetivamente se indignar quando não for respeitado em seus direitos mínimos.   


* É administrador hospitalar, com mestrado pela Universidade Mackenzie, MBA pela FIA-USP, membro da Academia Brasileira de Administração Hospitalar, vice-presidente de Gestão Administrativa da ABDEH – Associação Brasileira para o Desenvolvimento do Edifício Hospitalar (www.abdeh.org.br) e atual diretor geral do INDSH – Instituto Nacional de Desenvolvimento Social e Humano (www.indsh.org.br). E-mail: linkindsh@linkportal.com.br


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 * Os textos para esta seção devem ser enviados para o e-mail imprensa@portalmedico.org.br, acompanhados de uma foto em pose formal, breve currículo do autor com seus dados de contato. Os artigos devem conter de 3000 a 5000 caracteres com espaço e título com, no máximo, 60.


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