Escrito por Luiz Salvador de Miranda Sá Júnior*
A formação médica pode ser identificada como origem e motivo de algumas das principais dificuldades que transtornam a criação e a manutenção de um serviço médico decente no Brasil. Mas a primeira delas não é endógena daquele processo formador, situa-se além dela. Trata-se de uma conseqüência da defasagem existente entre a grande necessidade social de serviços médicos e a possibilidade limitada do mercado de remunerar seus serviços adequadamente, principalmente quando se pretende (ou se diz pretender) a universalização da assistência médica. Limitação de financiamento que, no Brasil, tem sido praticada por governos de todas as tendências políticas nominais.
O que sempre foi característica das populações pobres, uma marca do subdesenvolvimento social, econômico e cultural tem se estendido às camadas médicas, cada vez mais ricas, o que atingiu hoje proporções alarmantes no Brasil. Mas este não é um fenômeno brasileiro. Os cuidados médicos estão ficando fora do alcance até dos povos mais desenvolvidos e das pessoas cada vez mais bem remuneradas por causa do aumento de seus custos.
É preciso saber que esse encarecimento não decorre sequer principalmente no aumento da remuneração dos médicos. Até os anos sessenta, o valor que um paciente pagava por uma consulta médica quase sempre era bem maior do que o que pagava na farmácia para aviar a receita. Hoje esta proporção se inverteu muito.
Quando se trata do SUS, o que se paga para aviar uma receita pode superar seu valor na escala de centenas de vezes. O aumento do custo da assistência médica se deve ao aumento exponencial dos custos dos medicamentos e nos demais insumos tecnológicos exigidos pela assistência à saúde. Como passou a movimentar grande soma de dinheiro, a assistência médica passou a interessar grandes empresas, com imensos capitais e imensas possibilidades de influir e de corromper, ainda que seu propósito real fosse lucrar, multiplicar seu capital e não, prestar serviços de saúde, beneficiar a quem necessitasse de seus serviços. Pois, a lógica do capital é esta: aumentar o rendimento.
Este problema tem três aspectos a serem considerados. O primeiro, é o custo do trabalho, condição que se aplica a toda atividade laboral – o custo da mão de obra. O problema se tornou muito agravado no Brasil, onde o Estado se tornou o principal empregador de médicos e adotou uma política de aviltamento salarial e de sobrecarga de trabalho daqueles profissionais. O segundo aspecto é o aumento do custo dos insumos exigidos na assistência medica de boa qualidade. Este fenômeno se estende aos aspectos materiais da manutenção dos serviços.Principalmente, as dificuldades de financiamento para cobrir as despesas crescentes com os procedimentos tecnologizados que apresentam custos crescentes.
No entanto, as dificuldades de financiamento da atividade sanitária com o aumento exponencial de seus cursos (principalmente no que concerne à tecnologia) não se restringem ao mundo subdesenvolvido. O custo das tecnologias diagnósticas e terapêuticas e com o surgimento das empresas de seguro que cobrem o risco dos cuidados com a saúde, uma nova crise está atingindo o mundo desenvolvido. Porque no sistema capitalista, toda atividade social deve proporcionar lucro ou não sobreviverá. O maior lucro possível no menor tempo.Aí, a voracidade não deve ter limites.
O terceiro aspecto do problema refere-se ao sub-financiamento das atividades sanitárias efetivas e sua substituição por manobras demagógicas, descontínuas e sem adequação ou atualização tecnológica em favor de políticas fiscais. O Brasil é um dos paises do mundo que têm a maior aplicação de dinheiro per capita no mercado financeiro e em contas no estrangeiro. E cujos políticos são tidos campeões de propaganda enganosa e promessas vãs.
Por sinal, porque um governo necessita comprar serviços de propaganda e marquetingue? Porque gasta com isto muito mais do que com muitos programas sociais juntos? Por que não se comunica direta e francamente com seu povo usando os fortíssimos meios à sua disposição? Gratuitamente. Nesse conflito entre os interesses dos empresários e os interesses dos trabalhadores médicos, o encarecimento dos insumos que resultam no aumento do lucro das empresas vem sendo privilegiado pelos empresários e pelo Estado-empregador frente aos interesses dos trabalhadores.
Verifique-se a conduta dos empregadores públicos e privados frente ao aumento dos preços dos produtos e o pagamento aos médicos e outros trabalhadores. Conduta que se esconde atrás da intenção manifesta de cuidar da saúde das pessoas, de priorizar os interesses da sociedade. Neste problema interfere mais um fenômeno social considerável. O numero de pessoas que pretendem serem médicos é sempre muito maior dos que aqueles que tem mérito, recursos ou outras possibilidades de fazê-lo. Há sempre muito mais gente desejando ser médico do que o numero existente. Mesmo quando o número de vagas nos cursos médicos estão muito além do que seria razoável em termos da possibilidade do emprego efetivo daquele tipo de recurso humano. Porque, na sociedade dirigida pelo mercado soberano, também existe um mercado de estudantes de Medicina.
Os conceitos de exército profissional de reserva e de exército médico de reserva, parafraseiam o conceito marxiano de exército industrial de reserva, recurso usado pelo patronato industrial para fazer baixar os salários mesmo aviltados dos operários de uma atividade econômica, por meio da ampliação da procura de trabalho em proporção muito maior que a oferta de emprego. Ganhar pouco se torna menos mau que ficar desempregado. Assim, os salários são mantidos baixos à custa do sacrifício de muitas pessoas: os desempregados e os mal empregados.
Sobre a noção de exército industrial de reserva vale a pena destacar alguns fatos. Dentre as critica que Marx faz à atividade do capitalismo como agente de aumento da pobreza e do numero de pobres, podem ser destacados dois processos: primeiro – o crescimento econômico capitalista, quer se realize pela expansão da produção e do comércio de mercadorias, ou resulte da renda de investimentos, tiram o aumento de seus lucros da super- exploração dos trabalhadores que realizam as tarefas produtivas pela exigência de mais trabalho e melhor produtividade e pela diminuição dos salários e restringindo vantagens.
Alguns meios que se emprega para facilitar o processo de insaciável de exploração). Um deles e o que chamou de exército industrial de reserva, o fomento de um grande numero de desempregados e sub-empregados, cujas necessidades auxiliem a manter baixos os salários dos empregados e auxiliem a baixá-los ainda mais, ao mesmo tempo em que ajuda a manter a disciplina dos trabalhadores empregados. Pois, manter os empregos se torna mais importante que a luta pela melhoria dos salários e a obtenção de mais vantagens laborais. Este tipo de manobra, a proliferação de candidatos a emprego mais numerosos que os postos de trabalho existentes, pode ser identificada fatalmente, em qualquer tipo de trabalho proletário, mesmo entre os médicos. Mas é manobra característica das relações capitalistas de trabalho sendo ininteligível em uma política pretensamente “popular” ou mesmo, eticamente defensável de relações laborais. Mas, como nenhuma sociedade tolera isso por muito tempo a degradação de suas instituições médicas.
Quando sua deterioração se agrava excessivamente, dá-se uma crise e as coisas tendem a reverter à normalidade, com o Estado voltando a cumprir seu dever de controlar tal atividade e de assegurar qualidade mínima aos cursos superiores, especialmente dos cursos de Medicina. Dever do qual vem se omitindo sistematicamente no Brasil. Entretanto, o preço dessa crise e de sua correção pode ser muito alto. Muito mais alto do que se julga.
Porque a situação assumiu proporções absolutamente caóticas, prenunciando um “apagão” na saúde, em tudo semelhante ao que aconteceu no transporte aéreo recentemente. Como deve ser classificada a mesma conduta realizada como política de governo e como política de instituições internacionais de saúde? Principalmente quando os governantes agem assim para priorizar o serviço aos agiotas de quem se julgam devedores, sem que se tenha feito qualquer auditoria dessa “divida”?
Fazem do lucro seu objetivo maior. E persegue este objetivo empregando todos meios possíveis ao seu alcance. No plano acadêmico, fomenta a abertura de escolas médicas privadas sem hospitais, sem residências médicas; estimula e até força a aposentadoria de professores das escolas públicas para lhes assegurar corpo docente, finda por reduzir o salário congelado dos aposentados para os encorajar a buscar emprego nas escolas privadas.
Não bastasse isto, o governo estimula a importação de médicos formados no estrangeiro em paises nos quais o mercado de trabalho é mínimo ou inexistente. Como estes têm dificuldade de passar nos exames de revalidação de seus títulos, forçam a supressão dos exames. Aumentar o lucro, se possível, honestamente, se dizia ser o lema do liberalismo.
No neoliberalismo, o apêndice caiu. Trata-se de fenômeno que se enlaça dois problemas sociais complementares com reflexos na qualidade do trabalho médico e dos programas médico-assistenciais. A primeira medida governamental para fomentar o surgimento deste “exército medico de reserva” é a multiplicação de cursos de Medicina pagos e de baixa qualidade, com insuficientes recursos materiais (sobretudo serviços e Residências Médicas); recursos humanos deficientes (em geral sem qualificação) e com um sistema de trabalho disfuncional (geralmente ganhando por horas-aula); com grande número de alunos. Situação que se dá tanto no setor privado, dirigido pelo lucro, quanto no setor público, mal pago, burocratizado, sucateado, desprovido de recursos essenciais ao seu funcionamento satisfatório.
Em ambas as situações, a lógica gananciosa do mercado atende aos reclamos dos candidatos a estudantes de Medicina, ao mesmo tempo em que, contraditoriamente, restringe-lhes brutalmente o mercado de trabalho futuro, desorganiza seus sistemas de estruturação laboral e desprofissionaliza seu labor. Mas também faz cair à qualidade da assistência, tanto do ponto de vista técnico, quanto ético. A proliferação de cursos médicos privados no país e em países mais ou menos próximos sem quaisquer exigências de admissão, sem considerar o pagamento de anuidades ou outros critérios igualmente acessórios para selecionar médicos. Outros, são cursos criados com propósitos mercantis ou políticos, razão pela qual, a preparação técnica e ética que oferecem costuma ser bastante precária. Tudo isto reforça o exército profissional de reserva.
A segunda medida governamental para criar um exército médico de reserva consiste no fomento aos alunos brasileiros estudarem em faculdades no estrangeiro. Muitas vezes em cursos que não são reconhecidos nem em seus paises de origem ou em outros, cujas estruturas de formação e, principalmente, de exercício profissional, são radicalmente diversas daquelas que se praticam no Brasil. Medida que só agrava o problema. Em muitos países estrangeiros são criados cursos médicos como instrumento de propaganda política do país que os patrocina e como moeda de troca de agentes políticos. Os estudantes destinados àqueles cursos são recrutados por motivos e objetivos políticos. Sem qualquer critério de mérito acadêmico, de vocação ou de capacidade técnica. Só o QI, de quem indica. Também não querem ou não podem prosseguir sua carreira médica ali no país em obtiverem seu grau, devem voltar para o país de origem. Em ambos os casos, são médicos de exportação, formados para serem desovados fora do país em que estudaram só para isto. Pois, não são reconhecidos ali, nenhum deles ali inicia sua vida profissional. Isto acontece, é verdade, por que pode haver um momento em que os interesses do mercado potencial das pessoas que desejam ser médico se superponham às necessidades sociais que exijam dos médicos serem bem formados em estabelecimentos eficazes de ensino médico adequadamente dotados de recursos para isto. Prevalece aí a necessidade de ganhar dinheiro associado à de obter o título a qualquer custo sobre o que deveria ser a consciência ética e os limites orais da atividade individual e social. Ao que se associa, como parece ser bastante natural, o burocratismo, a corrupção e o despreparo dos funcionários que deveriam ter o dever prevenir essa situação, de saná- la e de corrigir os danos que ocasionasse. Em terceiro lugar, destaque-se a desvalorização sistematizada do trabalho médico que tem sido promovida na última década pelas agências governamentais brasileiras, pelos empregadores privados e pelos administradores de planos de saúde e empresas que credenciam médicos. Verifique-se a renda dos funcionários médios nos últimos dez anos e os compare com a variação dos preços que o governo administra (luz, água, impostos, gasolina) e com os valores pagos aos funcionários “de confiança”. O que induz à sua depreciação no mercado de empregos privados e no mercado de trabalho privado. Desvalorização que resulta simultaneamente do aumento do número de médicos e de sua desqualificação técnica e ética. Tudo, para fazer baixar o preço do seu trabalho, forma-se um verdadeiro exército profissional de reserva, composto por médicos desempregados, sem licença para clinicar ou reduzidos à clandestinidade. Tudo de acordo com o melhor figurino da exploração capitalista. Antigo, mas eficaz. Não há a necessária vigilância dos organismos estatais específicos, como as agencia estatais de educação, o que já foi registrado em muitos momentos históricos do país, tende a se dar descontrolada proliferação de cursos de Medicina. Mesmo quando se constata que muitos deles funcionam sem a mínima condição para cumprir sua missão institucional com eficácia. O que se agrava quando se considera que as agências reguladoras brasileiras parecem funcionar para agradar interesses econômicos e políticos paroquiais e momentâneos em lugar de atender os interesses populares e nacionais mais amplos e permanentes… Neste caso concreto que foi mencionado acima, a superprodução de médicos tem sido alentada pelos governos menos preocupados com a assistência real e de qualidade à população, que se mostram unicamente atentos ao custo do serviço. Melhor ainda para eles quando tal superprodução de trabalhadores destinada ampliar a oferta de mão-de-obra pode ser realizada por empresas privadas que lucram muito com isto. Ainda que a categoria profissional dos médicos e a população percam muito. A pletora da oferta de trabalho à qual se acrescenta o baixo nível geral da qualidade dos trabalhadores, faz diminuir os salários, ampliar a disputa pelo mercado e baixar o nível ético da competição e o nível técnico da atividade laboral. Em quarto lugar, situa-se a tentativa de substituir o médico por trabalhador menos qualificado e pior remunerado e cujo custo de formação seja menor e as exigências de recursos auxiliares para suas atividades sejam menores. Tal substituição é inaceitável do ponto de vista técnico, ético e político. Quando um fabricante de alimentos ou outro produto essencial para a vida das pessoas, por exemplo, emprega recursos deste tipo para diminuir suas despesas e aumentar seus lucros à custa de sua clientela, sua conduta é tida como anti-social e severamente sancionada. Situação de anarquia profissional médica semelhante sucedeu nos Estados Unidos na segunda metade de século dezenove, tal qual vem sucedendo no Brasil neoliberalizado, configurando um quadro político que merece mais atenção. Lá, a reforma Flexner foi à solução adotada. Lá, como cá, proliferavam entidades “educacionais” destinadas a atender à demanda de dos estudantes por cursos de Medicina; mesmo que não assegurassem a adequada formação aos seus alunos e mesmo sem qualquer garantia da absorção dos seus graduados pelo mercado de trabalho médico. Pode-se ponderar que não deve ser assim, que as necessidades sociais dos serviços médicos devem preterir todas as outras. Menos os interesses da agiotagem internacional, menos os interesses da burocracia política, menos todos os interesses em jogo em um sistema capitalista no qual só os médicos devam ter seu trabalho socializado. Sempre que ingressam no mercado médico mais profissionais do que o mercado é capaz de absorver, aparecem algumas conseqüências, todas nefastas: o mercado se desorganiza pela presença de muitos desempregados, os melhores profissionais migram para outras regiões ou outros paises, os restantes se acotovelam em busca de um sub-emprego ou uma atividade marginal. Desconsiderando a extensão e a qualidade do dano que médicos mal formados podem ocasionar e ocasionam. Pois, para formar um médico é necessário muito mais do que orientar sua instrução e lhe proporcional algum treinamento técnico. A formação de um médico exige a formação e de um cidadão, além de um técnico. A formação médica, como qualquer outro processo formativo, exige dos alunos a aquisição de informação, o desenvolvimento de habilidades específicas para a tarefa para a qual estão sendo preparados e a estruturação de atitudes. Principalmente a formação e o desenvolvimento das atitudes essenciais para o exercício daquela profissão. Há séculos, se sabe que não deve formar médicos (ou outro profissional qualquer) realizando apenas atividades teóricas, nem tal formação pode ser realizada exclusivamente por atividades práticas. Tudo isto compõe um programa sistemático pelo qual o governo brasileiro fomenta e realiza um programa sistemático de criação de um “exército industrial de reserva” destinado a enfraquecer política e corporativamente a Medicina. Só que este exército de reserva está formado por trabalhadores médicos. No plano profissional, o governo inventa uma contribuição previdenciária a ser extorquida dos aposentados, congela os salários dos funcionários e os honorários pagos governo e pelos planos de saúde em absoluta divergência com o aumento exagerado dos preços e tarifas de serviços sob controle governamental. No plano fiscal, o governo brasileiro adota tabelas escorchastes de impostos, especialmente dos impostos sobre serviços e de rendimentos, que chama renda (pois, chama renda aos míseros salários pagos aos funcionários), configurando verdadeiro confisco que recai sobre a classe média, na qual estão quase todos os médicos. E para corrigi-la, exige resgate. Como na Máfia. Corrige o imposto de renda criando uma taxa previdenciária para os aposentados. Praticamente todos os avanços recentes da Medicina têm se dado no terreno científico, ângulo geralmente considerado como o mais importante da, a produção mais nova é mais dispendiosa. Sobretudo, a tecnologia médica, que exige investimentos de grande vulto, mais na pesquisa de produtos novos que em sua produção, mais na propaganda que na distribuição.E como toda atividade que necessita muita propaganda, aparecem muitas oportunidades de evasão fiscal e outras espertezas. Daí a Medicina ser considerada como tecnologia do diagnóstico das doenças e como tecnologia do tratamento dos doentes. Mas também é o recurso gestor dos cuidados para com os doentes que necessitam tratamento médico e, principalmente, como conduta humanitária solidária de auxílio a um ser humano necessitado de assistência. Por causa de seu caráter tecnológico, é bem possível, e muitos pensem que a dimensão técnica revele seu traço mais essencial. O que não é verdade, mas fomenta fantasias de mecanização e automação do trabalho médico. A principal vertente da Medicina é e deve prosseguir sendo a humanitária e não a técnica (nem a econômica). Há que suponha que a Medicina ou pelo menos os médicos sejam mais antigos que a humanidade. Muito mais, dizem as lendas e os mitos. Sem grande esforço de imaginação, pode-se supor que o primeiro proto- médico na face da Terra poderia ter sido o primeiro símio. (Ou algum antepassado ou descendente dele) que, antes de existirem humanos, se deteve para auxiliar um parceiro sofrente, talvez machucado em um acidente ou em um conflito. Esse teria sido o primeiro esforço para ajudar um enfermo a tolerar ou a superar o mal-estar causado por sua enfermidade. O primeiro ato proto-médico. Esse arremedo de medicina sem médicos aconteceu no alvorecer de praticamente todas as culturas conhecidas devido às condições primitivas de sua existência social e a carência de seus recursos técnicos. Mas isso só se dá por um hiato o mais breve que for possível tolerá-la. Em todas, verificou-se a exigência de formação cada vez mais elaborada para os trabalhadores que cuidavam dos doentes, especialmente dos médicos. Não se pode imaginar alguém que prefira ser tratado por um curador improvisado quando pode ser atendido por um médico. Em geral, em praticamente todas as culturas, o caminho natural para a emergência dos médicos foi este: pajé, xamã ou feiticeiro, curandeiro, sacerdote médico e médico leigo. Não dá para retroagir, Como se faz com o culto da tecnologia ancestral, tradicional ou que for. Nenhuma cultura pode deixar de tratar seus doentes com eficácia que e a melhor assistência possível. Não basta a eficácia possível em condições de miserabilidade. Nem basta que se ponha em movimento um processo de engodo demagógico que finja tratá-los, atendendo-os de um modo que pareça convincente à sociedade, mas que não tem a necessária efetividade. Nenhuma cultura pode se dar ao luxo de não dispor de assistência médica capaz de atender às necessidades diagnósticas e terapêuticas de seus enfermos. Mesmo as sociedades mais primitivas trataram de atender a esta necessidade. Para atender a esta demanda, cada uma empregou os recursos que estavam à sua disposição. Os recursos que se nível de desenvolvimento sócio-econômico e cultural lhes permitiam empregar. Nível de desenvolvimento que determinou, também, a eficácia obtida com o emprego daquelesmeios. Algumas sociedades que sofreram mudanças muito buscas em sua estrutura social e econômica e que se obrigaram a improvisar médicos, rapidamente regressaram a formá-los como maior cuidado possível. O médico e a assistência médica cientificamente verificada são essenciais para o desenvolvimento econômico-social. Todas as atividades, programas, instituições, agências e agentes sociais cuja atividade precípua seja o diagnóstico das enfermidades e o tratamento dos enfermos situam-se naquele campo de práticas sociais denominado de assistência médica. Razão pela qual a assistência médica é muito mais ampla que a assistência por médico. No entanto, o trabalho médico constitui o eixo fundamental da atividade-fim da assistência médica. No plano individual, a assistência médica (atendimento médico às pessoas individualmente ou atenção médica individual) é a atividade profissional característica dos médicos que prestam seus serviços a quem necessita deles (seus pacientes ou quem se fizer responsáveis por eles). Esta atividade profissional pode ser prestada a um indivíduo, a um grupo ou a uma comunidade e pode assumir uma imensidade de formas particulares: um diagnóstico, uma consulta, uma cirurgia, um conselho, um exame clínico ou complementar de qualquer natureza, um parto, uma observação (ou história) clínica, bem como um sem-número de atividades médicas. No plano coletivo a assistência médica é prestada por agências sociais, como hospitais, ambulatórios, dispensários, policlínicas, centros médicos, clínicas, sanatórios e outras análogas. Mas aqui se destaca também a atividade de outras profissões sanitárias. Quem conhece a sociologia do trabalho e a História dos direitos das profissões sabe que toda ocupação para ser promovida a profissão deve ter suas prerrogativas profissionais exclusivas definidas pela lei no instrumento de sua institucionalização. Deve incumbir ao Estado disciplinar as relações entre as profissões e os profissionais na sociedade. Ao instituir uma profissão o legislador deve definir quais são as atividades privativas que configuram o campo profissional exclusivo de seus agentes. Isto é quais as que só podem ser exercidas legalmente pelos agentes daquela profissão. Sem que isto esteja estabelecido legalmente, a rigor, não há profissão e, por via de conseqüência, também não há profissional daquela carreira. Mas que esta incumbência não depende apenas do desejo ou do interesse dos legisladores. Depende, sobretudo, de condições objetivas, dentre as quais se distingue as possibilidades reais dos agentes sociais incumbidos daquela tarefa. Além das atividades que compõe o campo de trabalho instituído como prerrogativa exclusiva daquela profissão, o legislador pode lhe atribuir aos agentes de uma determinada atividade prerrogativas profissionais também atribuídas a agentes de outra ou outras profissões. Tais atividades se denominam atividades profissionais compartilhadas, que se somam às suas prerrogativas privativas. Ao menos nos países formalmente democráticos, a regulação das profissões e a delimitação do campo de atividade dos seus profissionais é tarefa do poder legislativo. Entretanto, a regulamentação da atividade profissional e das relações dos agentes de uma profissão entre si e a organização do seu trabalho naquela sociedade deve ser responsabilidade de seus organismos corporativos e, no máximo, de alguma agência estatal de vigilância sanitária do trabalho. Em geral, este organismo corporativo pode se denominar conselho, ordem ou colégio profissional. Seu nome não tem qualquer importância. O importante é de detenha atribuições legais de regulamentar, organizar e fiscalizar aquele trabalho na sociedade. O extensão de suas atribuições depende unicamente da Lei que o instituiu. A qualidade, o alcance e os meios posto à disposição de uma corporação depende da legislação que a instituiu. O nome do organismo corporativo – conselho, ordem ou colégio – não tem qualquer influência no alcance e na eficácia de suas possibilidades institucionais e laborais. Chama-se Conselho no Brasil, Ordem em Portugal e Colégio nas Espanha e países hispânicos. O que importa para caracterizar suas atribuições e suas possibilidades operacionais são as prerrogativas que a Lei lhe confere. É a Lei e não o nome da organização que define o alcance de suas atribuições. Muitos médicos brasileiros aspiram ilusoriamente à instituição de uma Ordem dos Médicos do Brasil, julgando que está teria a mesma situação política, social e institucional da Ordem dos Advogados do Brasil e, por extensão, sua influência política. Ledo engano. O que faz diferença, repita-se, é o conteúdo da Lei que instituiu a profissão de advogado no Brasil – o Estatuto do Advogado. O nome da agência social que encabeça aquela profissão não tem qualquer importância. Nenhuma mesmo. Outro motivo equivocado para muitos médicos desejarem a Ordem dos Médicos é a crença equivocada de que, com o advento da Ordem, só haverá uma única entidade médica. Coisa totalmente impossível no Brasil face às peculiaridades de sua legislação. Os sindicatos não desaparecerão, pois sua existência, papel e organização são definidos na legislação trabalhista e intessam a todas as atividades laborais. Por outro lado, qualquer grupo de pessoas pode fundar uma Associação Médica, nos termos do Código Civil Brasileiro. No Uruguai este estabelecimento corporativo que organiza a profissão médica se denomina sindicato e isto é indiferente, revela apenas um traço peculiar da história social local. O que faz uma dessas organizações corporativas diferir das outras é o conjunto de atribuições que a lei lhe assegura. E o organismo estatal de vigilância profissional pode ser nacional, regional ou local, na dependência da Ordem Política e Social que se pratique no Estado. Ou pode ser mobilizado nos três níveis do poder estatal, como é no Brasil (o organismo nacional de vigilância sanitária, a vigilância sanitária estadual e a vigilância sanitária municipal). O que determina a qualidade das instituições de uma lide profissional há de ser a quantidade de seus membros, sua importância na sociedade e, principalmente, a consciência social e política de seus agentes.
* É 1º secretário do Conselho Federal de Medicina (CFM).
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