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Escrito por Jene Greyce Souza de Oliveira*

A Leishmaniose Tegumentar Americana em sua forma mucosa é considerada temível por muitos médicos pela capacidade deformante e estigmatizante que pode advir da longa evolução desta patologia sem o diagnóstico e tratamento adequado. No entanto este “temor” infelizmente vem ocasionando mais malefícios do que benefícios, conforme venho infelizmente observando em minha prática médica na área de otorrinolaringologia no estado do Acre.

Há algum tempo tenho acompanhado casos de pacientes tratados como Leishmaniose Mucosa, tendo feito uso do antimonial pentavalente Glucantime sem estarem com a doença. Ou seja, procuraram atendimento médico com queixas nasais inespecíficas e somente por terem realizado Reação de Montenegro com resultado positivo, estes pacientes foram tratados sem se levar em conta dados relevantes na história epidemiológica e um exame físico adequado, que inclui exame otorrinolaringológico básico.

Não devemos esquecer que “todo meio disponível deve ser por nós (médicos) empregados em benefício do paciente”, a carência de especialistas em infectologia e otorrinolaringologia ocasionando um entrave maior (mas não impossível) para a avaliação do paciente, não deve servir de desculpas para um tratamento inadequado, sobretudo se o médico geral que fica na base do sistema de saúde não se sente seguro para realizar um tratamento especializado.

Certa vez tive a oportunidade de participar de um treinamento sobre leishmaniose promovido pela FUNASA aos servidores de saúde aqui em Rio Branco, e qual não foi minha surpresa quando percebi que os médicos, personagens principais do atendimento ao paciente estavam em pouquíssima quantidade no evento.

Tal situação expõe as seguintes vertentes: 1) os médicos sabem tudo sobre a doença e não precisam de maiores informações sobre o assunto, melhor deixar profissionais não-médicos se atualizarem; 2) os médicos não estão nem um pouco interessados sobre o assunto, e por isso deixam os demais profissionais não-médicos se aperfeiçoarem; 3) ou não está sendo oferecida aos profissionais médicos a chance de se aperfeiçoarem. Daí advém a seguinte situação: nossa realidade em muitos municípios reflete a ausência de médicos e se os poucos que lá estão não demonstrarem interesse nos problemas de saúde típicos de nossa região, não só como a leishmaniose, mas malária, hepatite, dengue e etc., e nem for oferecida a chance destes médicos se aperfeiçoarem nesta problemática, os pacientes sempre ficarão a mercê do tratamento de não-médicos, ou seja, enfermeiros, técnicos de enfermagem e técnicos de laboratório. Esses profissionais embora treinados para atuarem conjuntamente com o profissional médico muitas vezes acabam por fazer o “diagnóstico” e o “tratamento”, atos inerentes à nossa profissão. Uma situação ainda mais desconfortável é saber que mesmo nos locais onde existem médicos estes, delegam sua atribuição ao profissional não-médico de diagnosticar e tratar os pacientes. Exemplo real posso citar, de um paciente que foi tratado indevidamente com Glucantime, o médico sem examiná-lo e tão somente por suas queixas clínicas solicitou a intradermorreação de Montenegro, e o resultado do exame visto por profissional não médico que receitou ao paciente o antimonial pentavalente.

Em 2003, apresentei no Congresso Brasileiro de Medicina Tropical no estado do Pará os resultados de um estudo em pareceria com pesquisadores da Fundação Oswaldo Cruz de Salvador-BA, sobre o diagnóstico inadequado de Leishmaniose Mucosa em Rio Branco-Acre, e que o elevado número de casos registrados da doença na região poderia estar relacionado a erros diagnósticos e tratamento inadequado. Neste estudo preliminar, muitos pacientes que apresentavam queixas nasais inespecíficas e somente por apresentarem resultado de intradermorreação de Montenegro positivo haviam sido tratados com o antimonial pentavalente (Glucantime) e não haviam sido examinados pelo médico assistente. Convém ressaltar que este método diagnóstico amplamente difundido não diferencia doença atual de doença pregressa.

Em 2004, em um estudo mais amplo que foi abordado em dissertação de Mestrado, novamente chamei atenção para o problema da “alta” incidência de Leishmaniose Mucosa no estado, e os seguintes problemas foram levantados: 1) O sistema de notificação em nosso estado ainda é bastante falho;2) Há desperdício de dinheiro quando se libera medicamentos sem critérios de controle adequados;3) Os médicos (?) tendem a tratar os exames complementares e não os doentes, não levando em conta os efeitos adversos e a alta toxicidade do medicamento utilizado, além da conseqüência social de doente ter que afastar-se de suas atividades profissionais para a realização do tratamento.

Diante destas constatações cheguei a procurar na época as autoridades de saúde municipal e estadual para o conhecimento da situação, pois achava e acho necessária a presença de um médico otorrinolaringologista na equipe de atendimento aos pacientes com suspeita de doenças granulomatosas. Que trabalhos semelhantes são realizados em outros estados do Brasil, como a Bahia, que tem em suas equipes, médicos treinados (clínicos, dermatologistas, infectologistas e otorrinolaringologistas) somente para o estudo de doenças granulomatosas. No entanto, ouvi que não existia essa necessidade no estado e que na equipes de doenças tropicais (serviços do hospital de base e posto de saúde Barral y Barral) não cabia a especialidade de otorrinolaringologia.

Enfim, a Leishmaniose Mucosa não é uma doença difícil de diagnosticar e tratar, difícil é ter que lidar com “autoridades” que não entendem nada de saúde ou de doenças, que o que importa na verdade é se os “clientes” estão sendo atendidos, não se levando em conta a qualidade deste atendimento e sim a quantidade, também não interessa qual o profissional está prestando o atendimento e se está havendo resolutividade, Pois afinal, se houver resolutividade do problema não haverá mais doentes, não havendo mais doentes como justificar tantos gastos?

Definitivamente, a Leishmaniose não é uma doença difícil de tratar, mas outros aspectos político-sociais com certeza!

* É médica otorrinolaringologista e conselheira do Conselho Regional de Medicina do Estado do Acre (CRM-AC).

* As opiniões, comentários e abordagens incluidas nos artigos publicados nesta seção são de inteira responsabilidade de seus autores e não expressam, necessariamente, o entendimento do Conselho Federal de Medicina (CFM).


 * Os textos para esta seção devem ser enviados para o e-mail imprensa@portalmedico.org.br, acompanhados de uma foto em pose formal, breve currículo do autor com seus dados de contato. Os artigos devem conter de 3000 a 5000 caracteres com espaço e título com, no máximo, 60.


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