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Escrito por Romeu Ibrahim de Carvalho*

O Ministério da Saúde, atendendo a solicitações dos órgãos representativos da classe médica, adiou a data de implantação da Portaria 1.737, que deveria entrar em vigor no último dia 19 de fevereiro. É uma sectária tentativa de estatizar a hemoterapia, a assistência hospitalar e, finalmente, toda a saúde no Brasil, sonho de influentes grupos agindo no Ministério da Saúde, antes mesmo do escândalo dos hemoderivados, que custou mais de US$ 2 bilhões aos cofres públicos. Nivela-se a saúde no Brasil com o Sistema Único de Saúde, o SUS, conhecido de todos nós.

No seu artigo 1º: “O sangue e os hemocomponentes obtidos pelo SUS, diretamente nos serviços públicos ou em serviços privados contratados, serão destinados prioritariamente ao atendimento de usuários do próprio SUS”. Contempla-se uma exceção, no artigo 2, “quando a rede assistencial do SUS não possuir demanda” – “garantida a manutenção de um estoque mínimo de segurança”, oficial. Vale dizer: quando o sangue estiver com a sua validade quase vencida ou “em situação de emergência devidamente atestada pelo gestor público responsável”. Vale dizer: se você tiver uma hemorragia, e for atendido num hospital da rede privada, mesmo filantrópico, conveniado ao SUS, mesmo que seus familiares tenham doado o sangue para você, mesmo em feriados ou à noite, para você ter sua vida salva por uma transfusão com sangue dos hemocentros, a urgência precisará ser “devidamente atestada pelo gestor público responsável”. Na prática não receberá o sangue doado para você, mesmo internado em hospital privado se ele receber sangue dos hemocentros. E são muitos os hospitais que recebem sangue dos hemocentros.

Aliás, esta prática tem sido condenada como predatória concorrência gerida com dinheiro público. A aplicação dessa lei criará também imprevisíveis dificuldades para as campanhas de recrutamento de doadores de familiares que tenham convênios de sangue ou de órgãos. Afastará dos hemocentros os doadores. A história da Hemoterapia no Brasil foi escrita com a luta de destacados hematologistas, políticos e administradores idealistas que conseguiram impor e implantar extraordinária e competente redes pública e privada que se entendem, se respeitam e se completam. As perspectivas descortinadas pelo domínio das células tronco, o mais recente hemoderivado, impõem conjugação de esforços e que se decline de posturas sectárias e anacrônicas, se não quisermos ficar à margem desse extraordinário potencial terapêutico.

A politização do sangue, substrato ideológico dessa portaria, envolve graves riscos que não foram considerados pelos seus implementadores. São gestores de saúde, em vários níveis administrativos, agindo ora por conivência, ora por conveniência. Na França, essa visão cortou o sonho do então primeiro-ministro Laurent Fabius de suceder a Miterrand; condenou o honorável professor Roux, catedrático de Medicina, senador pelo Partido Comunista francês; encarcerou por quatro anos o Dr. Garretta, diretor do Serviço Nacional de Transfusão de Sangue, autor intelectual do scandale du sang.

Quando se injeta sangue na veia de um paciente, há sempre o risco de se estar injetando uma droga. Todos que participaram do processo, direta ou indiretamente – todos os médicos, paramédicos, doadores, enfermeiros, diretores de hospitais, gestores de saúde pública ou privada -, juridicamente, assumem uma responsabilidade para o resto da vida do paciente e que não se extingue com a eleição ou com o mandato. A implantação, como está redigida, dessa portaria envolve graves riscos para a rede pública, tumultos e dificuldades para a rede privada, desnecessários conflitos recíprocos e com hospitais e, sobretudo, insegurança para os pacientes nas urgências. Os responsáveis pela implantação da portaria, inclusive o ministro (registrado no Conselho Regional de Medicina sob o nº 6926), que levou a Hemobrás para Pernambuco, deve saber que prioridade em medicina há de ser sempre a do paciente. Ao inverter esse preceito ético abre-se perigoso precedente, ao permitir aos contratantes e gestores de saúde determinar a orientação das decisões médicas. É resquício de populismo demagógico, inconcebível na edificação de uma moderna democracia neste país. A politização do sangue envolve graves riscos não considerados pelos seus implementadores.

* É professor titular de Hematologia da Faculdade de Ciências Médicas de Minas Gerais.

Publicado no Jornal de Brasília, em 14/3/2005.

* As opiniões, comentários e abordagens incluidas nos artigos publicados nesta seção são de inteira responsabilidade de seus autores e não expressam, necessariamente, o entendimento do Conselho Federal de Medicina (CFM).


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