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Conselho Federal de Medicina

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Escrito por Júlio Resplande de Araújo Filho*

 

Recentes matérias do jornal O Popular sobre a carga horária dos médicos do serviço público foram oportunas para uma reflexão sobre alguns aspectos da nossa profissão que necessitam de uma visão menos jornalística e um pouco mais humana. Volta e meia os médicos viram notícia, por quê? Aliás, já virou rotina termos sempre nos jornais algum fato relacionado à medicina. Comumente para se levantar estatísticas estarrecedoras de gripe, dengue, CAIS lotados, déficits de profissionais, falta de UTI, erro médico e etc. Mas me pergunto: por que nunca se explora o lado do médico? Por que os nobres jornalistas não passam ao menos alguns dias acompanhando um médico em sua jornada? Vai render uma boa matéria? Vai vender o jornal? Não sei, mas vai fazê-los no mínimo pensar um pouco no momento de redigir uma manchete. Da forma como habitualmente é posto, e já observo isto há tempos, dá-se a impressão que somos uma cambada de vilões mercenários, abutres da desgraça alheia, cegos da imensa lama de tristeza que é a nossa medicina pública. E olha que tem país de primeiro mundo querendo copiar. Mas enganam-se e não enxergam o óbvio, que vou tentar lhes demonstrar.

Repudio, por princípios pessoais, quaisquer atitudes antiéticas, não profissionais ou que impliquem em desrespeito às leis ou aos contratos vigentes. E não aspiro também justificar a conduta dos que burlam as regras com os famosos, constantes e antigos “esquemas de plantão”, mas o fato do não cumprimento de carga horária tem gênese. O seu DNA se chama insatisfação remuneratória e condições não dignas para o trabalho. Ou alguém acredita que um salário de um médico concursado no Estado de R$2.187,00 por 20 horas semanais é algo atraente? Se fizermos uma matemática simples e dobrarmos a carga horária, o médico seria obrigado a ocupar toda sua semana por R$4.200,00 reais! E o que dizer do valor pago pelo município de Goiânia por 20 horas de R$1.114,00 reais? Mesmo que haja qualquer adicional, seja por insalubridade ou produtividade, não condizem com a enorme função social, responsabilidade e riscos inerentes da profissão. Isto explica o número irrisório de especialistas inscritos nas diversas seleções realizadas nos últimos anos.

Não sejamos hipócritas. São muitos anos de estudos, treinamento e formação. Excluindo os fracos de caráter e moral, que são poucos, formamos um grupo profissional dedicado naquilo que faz. De nós é cobrada uma atuação exemplar, proba, ética, sem chances de erro, tanto tecnicamente quanto na hora do exemplo para outras categorias. Somos exigidos, em todos os sentidos e em todo momento nos consultórios, nos hospitais, nos CAIS, na mídia, nos tribunais (como peritos ou réu) e nos diversos setores da sociedade. Somos diuturnamente vigiados e julgados pelos olhos e mentes do cidadão à nossa frente, dos familiares, da imprensa, dos advogados, do nosso Conselho, pelos nossos próprios colegas. Somos até igualados (não sei quem inventou isto) a sacerdotes (se bem que tem muita igreja rica por ai). Hoje o médico vive em constante tensão. Transformaram seu paciente em cliente e por fim em consumidor. Já não sabemos se devemos fazer o que aprendemos ou o que nosso advogado diz. Estamos jogando na defensiva.

Infelizmente, por vivermos em uma sociedade consumista e de aparências, o médico se vê obrigado a exibir um estilo de vida que não pode arcar. Criou-se um estereótipo que doutor ganha bem e deve pagar mais. O meu barbeiro, ao saber que sou médico, concluiu “Ah, se eu soubesse antes”. Há também um grande equívoco ao se confundir competência profissional com beleza exterior. Um grande médico goiano atende na sua garagem. Mas se não ostentarmos o porcelanato na sala de visita ou o carrão do ano, estamos fadados ao descrédito (até não sei se somos nós mesmos que alimentamos isto, com a vaidade que nos é peculiar). Mas as contas vencem no fim do mês. Temos família também. Conciliar um padrão de vida com o que nos é exigido não é fácil. Muitos buscam uma solução acumulando diversos empregos, na expectativa de somar dividendos. Mas o dia tem 24 horas para o doutor também. Daí a comum idéia de cumprir uma carga menor e correr para o outro serviço. Fico triste em admitir, mas está se fazendo da profissão uma somatória de “bicos”.

Todos, ao adentrar no serviço público, pensam em uma aposentadoria. Não é diferente com a nossa classe. Mas hoje em dia muitos ainda continuam trabalhando porque já trabalharam durante muitos anos na expectativa de melhora e agora não querem perder este tempo. Outros são neófitos, boa parte ainda inexperientes, muitos ainda sem formação adequada. Mas foi a primeira porta que lhes abriu. Toleram as dificuldades, as faltas de medicação, de vagas em UTI, de laboratório, de maca para exame, de cadeira para sentar, de banheiro decente, de material cirúrgico, de segurança, de ambulâncias, em suma, de condições mínimas de exercer seu trabalho à altura da exigência da sociedade e da magnitude que a população merece. Também sofremos com isto. Não estamos vendados, mas amordaçados e algemados. A categoria, por meio de suas entidades representativas, têm se manifestado a este respeito, mas o poder público, na sua letargia costumeira, faz de conta que é assim mesmo. Ao oferecer vagas no serviço público com contrato temporário, com salários irrisórios, sem as garantias mínimas do trabalhador, o Estado e os municípios desrespeitam e desmerecem a categoria, prejudicando diretamente o cidadão que paga seus impostos. E tem Secretário(a) de Saúde que tem a coragem de bradar em alto e bom som que “se não está satisfeito que deixe a vaga para quem quer trabalhar”.

A verdade é que o poder público faz vistas grossas dos esquemas existentes entre médicos e outros profissionais da saúde com as gerências administrativas de cada unidade. Isto é muito cômodo para o gestor. Mas tenham certeza, não é o desejo da classe médica. Lutamos por reconhecimento profissional, remuneração descente, boas condições de trabalho e possibilidade de progressão na carreira pública. Não é justo que profissionais recém formados e médicos já com anos de dedicação e experiência no trabalho público tenham remuneração semelhante. Muitos especialistas bem formados, até mesmo com pós-graduação e cursos no exterior não agregam esta carga de conhecimento aos seus rendimentos. Isto não é justo e desestimula muitos profissionais a continuarem no serviço público. Onde estão os planos de cargos e salários prometidos às vésperas de eleições? Compromisso. Isto é o que falta.

Por outro lado podemos mudar completamente este quadro. Existem diversas sugestões para um serviço público de saúde de qualidade. Mas não se enganem. Todas passam por uma remuneração à altura dos profissionais da saúde, e aí incluo as outras categorias da área. Em relação à classe médica, a efetivação do piso salarial de R$7.000,00, que foi aprovado no Senado Federal e agora tramita na Câmara dos Deputados, já seria um bom começo. Apesar de voltado para o serviço privado, este piso poderia ser um critério para se discutir a remuneração paga pelo serviço público. Outro projeto em andamento na Câmara prevê a criação da carreira de Estado para médicos, com dedicação exclusiva destes profissionais. A proposta prevê a equiparação dos salários dos médicos aos subsídios de juízes e promotores. A medicina nas três esferas do serviço público seria exercida por ocupantes de cargos efetivos, com ingresso na carreira mediante concurso e ascensão funcional por critérios de merecimento e antiguidade, com remuneração inicial de R$15.187,00. Aí sim, teríamos como fixar o profissional em um único local, exigir assiduidade e cobrar as horas devidas de trabalho. Seria uma forma de interiorizar o médico, diminuindo a grande concentração de profissionais nas capitais e corrigir a escassez de serviços médicos de qualidade no interior do país. E olha que dispensamos as férias forenses.

Enquanto perdurar esta vergonha que é a remuneração da nossa classe e dos outros profissionais da área, viveremos esta fábula do faz de conta, onde o maior prejudicado é aquele que com suor e dificuldades paga a conta no final do mês: o paciente. Basta ler os jornais. Mas não acreditem apenas nas manchetes.

* É mestre e doutor em Urologia.

* As opiniões, comentários e abordagens incluidas nos artigos publicados nesta seção são de inteira responsabilidade de seus autores e não expressam, necessariamente, o entendimento do Conselho Federal de Medicina (CFM).


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