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Cícero Urban*

 

Acreditar em Deus faz diferença quando enfrentamos um câncer? Pode alterar a realidade de alguém destinado a desenvolver uma doença grave e letal? A fé muda o destino daqueles que sofrem? Essas não são questões simples e que podem ser respondidas sem a devida reflexão, sem o auxílio do método científico, da filosofia e da teologia.

“Câncer” é um termo genérico e que representa mais de mil doenças diferentes. A maioria delas é curável, se diagnosticada precocemente e, claro, se tratada de maneira adequada, por profissionais e centros tecnicamente preparados – tudo isso sem a necessidade da intervenção divina: bastam o método científico e o acesso aos meios diagnósticos e terapêuticos.

Muitos são os chamados e poucos são os escolhidos. Assim é na Bíblia. Assim também é na genética. Mesmo para aqueles raros portadores de mutações genéticas. Em geral, a maioria deles não desenvolverá as doenças a que estão predispostos. Assim, as doenças de origem genética surgem em quem pode e não em quem quer. Podemos dizer que são aleatórias, randomizadas, e não uma punição divina.

A espiritualidade pode ser definida como a propensão do ser humano para a busca de um significado transcendente para a vida e de uma conexão com algo maior. Ela pode ou não estar ligada a uma vivência religiosa. Até mesmo Marx falava da existência de uma espiritualidade sem Deus. Contudo, a relação dela com a saúde humana permanece um grande dilema. Mais espiritualidade pode significar menos sofrimento ou um preparo melhor para enfrentar doenças graves? Cura? As perdas provocadas pelas doenças podem ser amenizadas por um sentimento ou por uma crença em algo maior que nós, ou que compense a nossa vulnerabilidade existencial?

Existem alguns modelos de estudos que pretendem medir a espiritualidade. De novo, não se trata de medir a fé ou a religiosidade. Esta última, por exemplo, é um conjunto de sistemas culturais, valores morais e crenças que relacionam o ser humano com a espiritualidade. Ainda que isso tenha grandes limites metodológicos, a aplicação desses modelos pode ajudar no desenvolvimento de estudos científicos sobre o impacto da espiritualidade na saúde humana. Mas a ciência pretende medir os fatos concretos – compará-los e buscar uma relação de causa e efeito. A espiritualidade busca o transcendente e o intangível, o não quantificável. Podem ser aliadas?

Na prática oncológica, o que percebemos é que os pacientes que enfrentam a doença de maneira mais serena, em geral, são aqueles que estabeleceram relações interpessoais mais sólidas, maduras, seja com a família, seja com seus amigos. A classe social, por outro lado, não tem tanta interferência nisso. E no caso da religião? Por mais que alguns até sejam tentados a achar que pessoas religiosas tenham uma capacidade de aceitar melhor a dor e o sofrimento, sua interferência possivelmente esteja mais ligada às relações interpessoais e à percepção do significado da vida por meio dela.

A espiritualidade, então, enquanto relação humana com algo maior, pode fazer diferença. E esse algo maior pode até ser Deus para alguns. Mas pode também estar na família, no ideal ou em um legado social que deixamos para a posteridade. Se a imortalidade existe, ela nunca poderá ser provada cientificamente; ficará nas obras e nas recordações. Os que mais sofrem não são aqueles que não têm religião ou que não acreditam em Deus, mas aqueles centrados em si mesmos. “Não existe dor maior do que a recordação dos tempos de glória na miséria”, dizia Francesca de Rimini. Dante tinha razão.

 

*Médico oncologista e mastologista, é professor de Metodologia Científica e Bioética na Universidade Positivo e vice-presidente do Instituto de Ciência e Fé em Curitiba.

 
    

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