Escrito por José Abelardo Garcia de Meneses*
A imprensa baiana e brasileira tem dedicado recentemente espaço considerável em seus noticiários ao acompanhamento da segunda greve de fome do bispo da diocese de Barra, Dom Luiz Flávio Cappio em protesto contra o Projeto do Governo Federal de Integração do Rio São Francisco com Bacias do Nordeste brasileiro, amplamente conhecido como Projeto de Transposição das Águas do Rio São Francisco.
A greve de fome, coletiva ou individual, tem sido utilizada para sensibilizar as autoridades como forma de protesto ante pontos discordantes em determinadas decisões político-administrativas, quando as reivindicações do militante não são atendidas. Esta atitude extrema tem sido tomada por ativistas políticos, prisioneiros comuns, prisioneiros políticos, trabalhadores, religiosos, cientistas, etc., em defesa de ideologias e propostas políticas e de cunho social. O benefício deste recurso de pressão pode ser individual, mas habitualmente tem sido em favor da coletividade, por isso mesmo tem obtido alcance social que justifica a ampla cobertura jornalística.
A recusa à ingestão de alimentos por qualquer pessoa, ou grupo de pessoas livres, capazes e conscientes, com a finalidade de luta contra uma decisão política, como forma de valorização e de manifestação de seu descontentamento, é direito fundamentado nos chamados direitos de liberdade de expressão garantidos pela Constituição Federal de 1988.
Esta modalidade de protesto que envolve questões políticas, administrativas, legais e médicas enseja reflexões do ponto de vista moral, albergadas no Código de Ética Médica em seu artigo 51 inserido no capítulo dos Direitos Humanos( ), quando veda ao médico desrespeitar a vontade do cidadão alimentando-o contra a sua vontade e determinação. No entanto, há previsão de excepcionalidade na hipótese de risco iminente à vida, quando o médico deve agir em defesa desta, corrigindo os distúrbios que acometem aqueles que se privam da alimentação por longos períodos, quando deixam de ser considerados apenas ativistas ou militantes e passam à condição de paciente, dada a debilidade física e a impossibilidade de manifestar-se. Esta orientação encontra ainda assento no Código Penal brasileiro que também, em sede de exceção de antijuridicidade, dispõe que o médico deve promover o tratamento arbitrário em face do iminente perigo à vida.( )
Importante relevar que o grevista de fome não é um suicida, ele não deseja a sua morte. Se assim fosse poderia utilizar um método menos doloroso de alcançá-la. O que ele pretende é chamar a atenção da sociedade para uma injustiça social, ainda que sob a sua visão de mundo. A dificuldade reside em estabelecer o momento em que há passagem da condição de manifestante para a de paciente.
A Declaração de Malta sobre Pessoas em Greve de Fome( ) traz diretrizes aos médicos que assistem aos grevistas de fome as quais em apertada síntese destacamos: respeito à autonomia do cidadão; acompanhamento da pessoa em inanição com avaliação médica regular e registro dos dados verificados; quando possível colher a sua história médica; manter a confidencialidade em obediência ao princípio do segredo profissional; evitar exercer pressão inadequada para suspensão da greve de fome, criando conflitos e constrangimentos; não condicionar o acompanhamento médico à suspensão da greve de fome; evitar qualquer ação coercitiva contra o grevista de fome, seja dos militantes que o cercam ou mesmo dos familiares; informar à família apenas o que for autorizado pelo manifestante; obter uma segunda opinião médica e permitir o acompanhamento deste outro profissional, se for o desejo do grevista; informar em termos claros e compreensíveis ao manifestante das conseqüências clínicas de sua atitude; tratar as possíveis infecções que possam acometer o cidadão, aconselhando-o a aumentar a ingestão de líquidos via oral, ou que aceite a infusão venosa de soluções balanceadas; verificar diariamente a intenção de continuar com a forma de protesto; qualquer tratamento proposto só deve ser administrado com a sua concordância não havendo conflito com a necessidade de intervenção médica, quando advir a inconsciência do paciente visando retirar os danos causados e a recuperação da saúde do manifestante.
A atuação médica encontra assim assento no paternalismo hipocrático, exceção nos dias atuais para as decisões médicas sem a manifestação expressa do paciente. Agindo assim o médico estará repousando a sua atitude nos princípios da beneficência e da não-maleficência em favor da vida, tutelada pelo estado e pela consciência de quem exerce a profissão com honra e dignidade.
* José Abelardo Garcia de Meneses é anestesiologista e presidente do Conselho Regional de Medicina do Estado da Bahia (Cremeb).
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