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Conselho Federal de Medicina

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Escrito por Evaldo A. D´Assumpção*

Conta a lenda que no século VIII um imperador da Frigia, chamado Górdio, em louvor a Zeus que lhe teria proporcionado ser rei quando era um camponês e conduzia carro de bois, amarrou este mesmo carro numa coluna, no templo do deus maior, dando um nó tão complexo que ninguém seria capaz de desata-lo. Quinhentos anos depois, Alexandre Magno passa pela região e lhe falam de uma profecia pela qual quem desatasse o nó conquistaria toda a Ásia Menor. Foi ao templo e observando a complexidade do nó, não titubeou: desembainhou a espada e o cortou ao meio, desfazendo-o. Certo ou errado, o fato é que pouco anos depois ele conquistava toda aquela região.

Muitos séculos são passados desde então e neste segundo milênio, um novo nó Górdio é colocado, agora diante dos médicos, como um terrível desafio. Refiro-me aos enfermos portadores de graves doenças ou lesões traumáticas, pelas quais suas condições vitais estão séria ou definitivamente comprometidas. São então submetidos a tratamentos heróicos, onde a tecnologia de ponta – sofisticada e caríssima – é utilizada, porém a resposta terapêutica permanece praticamente inalterada.

Mercê desta mesma tecnologia, o quadro mórbido não evolui, nem para uma melhora – por ser praticamente impossível – nem para o desfecho fatal. Por meses e até longos anos, esses enfermos permanecem em unidades de terapia intensiva. Outros, mais felizes, são levados para áreas de internação onde seus familiares podem permanecer ao seu lado em tempo integral. Outros, em número bem menor, são liberados para retornar às suas casas onde uma verdadeira unidade de tratamento intensivo é montada, mantendo-o estável em sua agonia, por tempo indefinido.

Nesses casos não se prolonga a vida, e sim a morte.

Depois de longo período, a família exaurida, física, emocional e financeiramente, começa a pressionar os médicos por uma solução. Os médicos, quase sempre já acomodados com aquele quadro inalterado e inalterável, se angustiam por uma tomada de decisão, imaginando qual será a mais adequada.

Aí está a Síndrome do Nó Górdio. Familiares e médicos contemplam o enfermo tal e qual se contemplava o famoso nó da mitologia. Como desatá-lo?

O código de deontologia médica, em seu artigo 130 deixa claro o impedimento ético da utilização de novos tratamentos em enfermos incuráveis, especialmente se não trazem esperança concreta de melhora e ainda impõe ao enfermo sofrimentos adicionais.

Contudo, a pressão dos laboratórios farmacêuticos que lançam novas e caríssimas drogas, a pressão das indústrias que fabricam aparelhos capazes de manter um corpo aparentemente vivo, enquanto a pessoa há muito já morreu, é forte demais. E a ela se juntam as pressões oriundas de grupos defensores da vida a qualquer preço, mesmo que seja apenas um simulacro de vida. Pergunto-me se para eles se aplicaria essa mesma argumentação. Não em malabarismos verbais quando a realidade lhes está distante, mas no momento azado de sua própria agonia.

Em muito boa hora, o Conselho Federal de Medicina editou a resolução 1805/06 que abria as portas para a ortotanásia, ou autanásia (auto = por si só, tánatos = morte, como creio ser mais apropriado dizer). Para ela recebeu a aprovação moral da CNBB, sempre olhada com reservas pelos médicos, tendo porém vida breve, com o surpreendente embargo pelo Poder Judiciário, até então amplo defensor de avanços terapêuticos e tecnológicos, nem sempre moralmente válidos. Curioso paradoxo.

Um dos pioneiros da Tanatologia no Brasil, estudando-a e dando suporte a enfermos em fase terminal e familiares enlutados há mais de trinta anos, aprendi a respeitar a evolução natural da vida que, existindo num meio permeado pela impermanência de tudo e de todos, limitada pelo espaço e pelo tempo, somente nas oníricas fantasias dos prepotentes, deve durar para sempre.

A vida é um dom precioso e ao mesmo tempo extremamente frágil. Deve ser cuidada carinhosamente com mãos hábeis, suaves e compassivas. Contudo, se não vem acompanhada de predicados essenciais ao seu sentido maior que é a felicidade genuína (não me refiro ao hedonismo nem às suas variações, que rejeito), não há porque prolongá-la artificialmente, pela intransigência da tecnologia cujo maior objetivo é o êxito de suas ações e não necessariamente o bem estar da pessoa por ela manipulada.

O médico tem de perder a noção de que a morte é sua inimiga. Ao contrário, ela é sua aliada e sua mestra na medida em que lhe ensina a fragilidade da vida, a imediatidade dos nossos atos, a transitoriedade de tudo e de todos, a impermanência que rege nosso tempo enquanto neste mundo de surpresas, de paradoxos, de interrogações.

Oxalá a resolução 1805 seja reavivada e volte para libertar os que sofrem absurdamente, proporcionando-lhes um suave caminhar da vida em transformação. Oxalá nós, os médicos, tenhamos a coragem de defender sempre a dignidade da vida, tanto quanto a dignidade da morte. Sendo sempre, porém, agentes da vida digna, jamais soturnos agentes da morte.

* É médico, escritor, biotanatólogo e bioeticista, membro emérito da Academia Mineira de Medicina.

* As opiniões, comentários e abordagens incluidas nos artigos publicados nesta seção são de inteira responsabilidade de seus autores e não expressam, necessariamente, o entendimento do Conselho Federal de Medicina (CFM).

 

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