Escrito por Renato Françoso Filho*
O médico vive uma crise de identidade. Vamos aos fatos: a Constituição de 1988 assegura, a toda a população brasileira, acesso integral aos cuidados com a saúde. Dito de outra forma, o Estado brasileiro assegura que nenhum cidadão pode deixar de ter médicos à sua disposição.
Ocorre que só se esqueceram de combinar com os profissionais da medicina, de os contratar, de lhes dar condições adequadas de trabalho, de reciclagem de conhecimento, além de honorários justos. Lamentável, ainda, é o fato de que criaram inúmeras categorias de médicos para prestar assistência aos usuários do Sistema Único de Saúde (SUS), que, aliás, nem ao menos é único.
Não me posiciono contra o SUS; ao contrário, sou seu ardoroso defensor, na medida em que é o mais abrangente e mais amplo sistema de atendimento público do mundo. A questão é que o SUS só se torna factível porque somos nós, os médicos, quem nos sacrificamos para que ele exista.
Somos nós, os médicos, que atendemos a população, simplesmente porque temos compromisso social. Porque acreditamos na grandeza de nossa função, submetemo-nos a toda a sorte de exploração. Assim, somos usados para realizar mutirões (hérnia, cataratas, próstatas, etc.) e até como massa de manobra para promover vereadores, prefeitos e governadores.
Somos, ainda, usados para ocupar postos de saúde na periferia, que funcionam sem equipamentos, sem pessoal técnico, sem segurança. Ficamos expostos a todos os tipos de desrespeito e humilhações, muitas vezes chefiados por profissional não médico, que se ufana em nos ter subalternos.
Há, também, aquele médico sem vínculo algum com o sistema público de saúde. Ele só é um realizador de ações de saúde, mas, legalmente, ninguém toma conhecimento de sua prestação de serviços, exceto quando se busca culpar alguém por morte, por resultado adverso ou falha do sistema. Aí, sim, temos o chamado boi de piranha; o responsável: é o Doutor!
É uma figura fantasma para o SUS, porque não tem registro, não tem fundo de garantia, férias, 13º salário e nem mesmo salário. Só recebe por atos praticados, pelas cirurgias, visitas, consultas, atendimentos. E recebe valores aviltantes, via hospital. Nem para sua conta bancária vai o mísero dinheiro, segue para as contas de Santas Casas, de hospitais filantrópicos e mesmo de hospitais particulares que mantêm convênio com o Sistema Único. Sabe lá Deus quando este dinheiro irá para seu legítimo merecedor, o médico. Depende da vontade do diretor do hospital, da condição financeira e das dívidas das instituições, e assim por diante. Muitas vezes, o profissional nem vê a cor do honorário que lhe é devido.
No entanto, o atendimento é feito, a cirurgia realizada, o cidadão sente-se satisfeito com nosso trabalho. Esse, aliás, é o único detalhe positivo; a satisfação dos cidadãos. Mas nós, os médicos, não somos empregados, não temos vínculo legal, nem com o SUS, nem com o Estado (seja federal, estadual ou municipal) e, muito menos, com o hospital.
Porém, cobram-nos, todos estes maus patrões, como se fôssemos, de fato, seus empregados; exigem dedicação, competência, responsabilidade e disponibilidade imediata. Como paga? A sensação do dever cumprido! Precisamos mudar imediatamente este panorama. O médico deve ter seu trabalho reconhecido. Temos de definir se somos liberais (com todos os bônus e ônus) ou empregados dos SUS (também com ônus e bônus). Neste caso, temos de receber pelo que fazemos diretamente em nossas contas, sem intermediários, e valores justos, não míseras esmolas!
É mister dizer à sociedade que quem cuida da saúde somos nós, com o nosso trabalho, nossa dedicação e nosso conhecimento. Amamos o que fazemos, mas exigimos respeito. Queremos e devemos ter condições de trabalho e remuneração justa.
Não podemos continuar a viver crises existenciais sem saber, efetivamente, o que é que somos no universo do Sistema Único de Saúde. Vamos lutar pelo SUS, mas a sociedade tem de saber que existimos e somos, nós médicos, quem viabilizamos a sua existência.
* É diretor de Comunicação da Associação Paulista de Medicina.
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